NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte seis)
Beto Muniz
 
 

O menino queria ficar ali com a mão dentro da mão da mãe contando do macaco que o pai matou, mais porque gostava de ficar com a mãe do que para contar a história que ele já tinha contado mais de uma vez e a mãe ainda parecia não ter entendido. Porém, a mulher não queria mais saber de conversar e despachou o menino para a cama. Juberto se deitou, porém o pé doía muito e ele ficou acordado pensando que boca de mulher é agourenta, quando roga praga a maldição pega e fica grudada no infeliz até que outra mulher reze para tirar a praga. O menino pensa nessas coisas e pede perdão a Deus. Perdão porque a mãe não rogou praga, a mãe só disse que ele não tinha nada que querer ir com o pai cobrar a dívida no Levi. Mas o menino já estava agoniado de ficar sempre dentro ou perto de casa, nunca via cara nova, nunca via gente diferente! Os irmãos e primos graúdos podiam sair todos os dias da semana, sempre de manhãzinha, para estudar. O Jorge e a Irene regravam a horta antes do sol raiar e voltavam pra casa, lavavam os pés, trocavam de roupa, tomavam uma caneca de leite com o Bira que já estava pronto e ainda com cara de sono, depois se encontravam com a Márcia e o Grilo lá na porteira. Os cincos iam juntos pra escola na carroça do tio Chico.

Até o gaúcho, cavalo do tio, tinha vez! Todo dia ele ia pra vila e voltava. Puxar carroça bem que podia ser divertido desse jeito. O menino tinha curiosidade em ver os cadernos dos irmãos, estava proibido de pegar os livros e materiais dos irmãos, mas a vontade era maior que o medo de tunda da mãe e ele espiava escondido, quando não tinha ninguém vigiando. Vó Albina tinha ensinado a soletrar palavras pequenas, ele entendia que juntava duas letrinhas e dava noutra: D mais E é DE, o começo do nome de Deus. Mas e o resto? Quando é que ia aprender o nome de todas letrinhas e o som formado com os casamentos delas? O neto ainda se admirava da rapidez que a vó tinha para entender todas as letrinhas que formavam as histórias dos livros. Sabia que era ler, vó Albina lia as histórias e o Juberto queria aprender era isso, queira aprender a ler sozinho, logo! Queria ele mesmo saber diretamente dos livros tudo que eles contavam. Não mexia nos cadernos dos irmãos por maldade, queria descobrir o que é que a irmã e o irmão mais velho fizeram nos cadernos que aprenderam a ler. Não liam rápido e com o mesmo gosto da Vó Albina, mas liam muito mais caprichado e entendível que o Bira, esse ainda não sabia ler direito, mas isso era porque ele é burro, no dizer da Irene. A mãe discordava e defendia o Bira dizendo que ele só era distraído e não se interessava pelos estudos do jeito que deveria se interessar, mas a irmã dizia que ele era é muito burro mesmo. Onde já se viu repetir duas vezes o primeiro ano? O menino não entendia essas coisas, não entendia os cadernos dos irmãos e não entendia também porque não podia acompanhar o pai. Ele só queria conhecer o Levi e a fazenda do Levi, onde o pai tinha trabalhado uma semana inteirinha e estava indo receber os dias trabalhados. Queria também não repetir o ano quando começasse seu estudo, para a irmã não achar que ele era burro igual o magricelo do Bira. A mãe já tinha falado que depois do natal ia começar outro ano e então ele poderia ir pra escola. A professora não era mais a Vó Albertina, mas era também muito boa professora. Juberto entendia que ainda não era tempo de ir para a escola, mas já que não podia ir até a vila com os irmãos e primos, fazendo algazarra na carroça do tio, batendo uma vara nos arreios do gaúcho para ele apertar os passos, então ele tinha mais era que bater pé, fazer birra e fincar a vontade de acompanhar o pai. A mãe não queria que ele fosse e ficou dizendo pro menino deixar de birra e que era melhor o pai ir e voltar logo. Dizia que o menino só queria era atrapalhar; que depois o pai ainda teria que carregá-lo; que a distância era muita, duas léguas; e outras coisas que o menino não quis saber porque já estava de vontade formada e o pai não tinha dito nem que sim, nem que não.

Se o pai falasse "não vai" o menino ficava amuado, esticava o bico, mas ficava calado, nem mais um pio. No entanto o pai só ouvia o menino dizer que queria ir; que agüentava andar as duas léguas; que não reclamaria no caminho; que não pediria cavalinho pro pai e tantas outras insistências. A mãe acabou desistindo de argumentar contra e encerrou dizendo que o menino ia se arrepender por não ter dado ouvidos a ela. Disse e saiu pro terreiro. O menino sabia que não ia se arrepender, das poucas vezes que o pai permitira que ele o acompanhasse nunca tinha se arrependido. Esse engano é por conta que a mãe pouco sabe dos assuntos que brotam e criam raízes na mente do filho. Se ela soubesse que o menino recorda todos os passeios à vila como se fossem aventuras de livro, daqueles livros que a avó guarda trancados no baú e só tira quando o neto a visita e pede para ouvir outra vez a história do livro, a mãe nem ficaria dizendo coisas para fazer o menino desistir de acompanhar o pai. Juberto gosta de descobrir o mundo na voz da avó, mas gosta de verdade mesmo é de conhecer o mundo por conta própria, por conta de sair além das fronteiras do sítio se imaginando o herói das histórias nos livros. Gosta de armazenar lembranças como se a mente fosse o baú da vó Albina.

A mente dele nem tem muita coisa guardada, enraizada e crescendo feito pé de milho que a gente percebe desenvolver até criar espigas, mas já tem algumas histórias plantadas que diariamente são relembradas, regradas e sendo acrescentadas umas miudezas sim. São misturas de fatos com imaginações. Juberto vive um pedaço de história hoje e amanhã pensa que foi mais além, depois de amanhã o além já está incorporado e passado um tempo a história daquele dia se transformou numa aventura sem tamanho nem fim. O menino não sabe mais onde terminam as recordações e começam as invenções, sabe que tem é muita lembrança boa dentro da cachola, umas aventuras que a mãe nem desconfia que existem lá dentro, estão guardadinhas. Ninguém sabe das histórias que o menino inventa sobre os passeios. São segredos, tesouros que ele guarda só para si. Não fala delas com o pai, não conta suas aventuras para a mãe e nem divide suas imaginações com os irmãos. Embora sejam companhias diárias nos afazeres, brincadeiras e aventuras, os irmãos não saberiam compartilhar o sabor incomum das recordações que invadem seus pensamentos em dias de ventanias, em dias de chuva, em noites de fogueira.

O dia amanheceu ventoso, parecia que ia chover, Juberto ainda não estava acordado quando o pai saiu para ordenhar as cabritas, acordou quando ele retornou com o galão de leite. Continuou deitado, ouvindo assovio do vento nas frestas da parede de pau a pique. Pelos movimentos da casa percebeu os irmãos graúdos voltando da horta, acordando o Bira que era dos medianos e se ajeitando para irem pra escola. Ouviu o pai falando com a mãe enquanto se arrumava para ir à fazenda do Levi Américo.

Contrariando a ventania e espantando o cheiro de chuva, o sol estava nascendo e clareando tudo, entrando pelos furos do teto e frestas da janela para formar um emaranhado de fios dourados na penumbra do quarto. Os irmãos pediram a benção da mãe e do pai depois saíram com os embornais de cadernos, também devia ser hora do pai sair pra fazenda do Levi. O menino se levantou e ficou na cozinha, ao lado do fogão a lenha, se fazendo de bobo. Pela janela viu as galinhas ciscando no terreiro, o leitão caruncho fuçando o cocho d'água, a porteira batendo sozinha e os cocorutos dos irmãos se aboletando na carroça. Enquanto tomava leite de cabra misturado com o café da mãe pensou que o dia não seria de chuva, mas ainda assim seria dia de ventania, dia de uva marrenta na garganta, dia de nova aventura - isso se o pai deixasse! Juberto terminou seu café da manhã e foi lavar a cara, depois continuou por perto, arrodeando o pai, esperando. Quando o pai perguntou se estava pronto ele deu um pulo de satisfação, calçou as botinas que a avó tinha presenteado há muito tempo, quando seus pés de menino eram menores, e seguiu o pai rumo a porteira. No meio do terreiro voltou correndo, arrancou as botinas apertadas e calçou os chinelos de couro do Bira, as precatas de sair para caçar juriti no estilingue.

De fato Juberto não reclamou, não pediu cavalinho nem na volta e de fato se arrependeu de insistir em acompanhar o pai. Jeromo andava depressa, não tão depressa, mas sem parar como querendo que o filho pedisse arrego. Sabia o filho que tinha, Juberto era turrão e apesar das pernas cansadas, dos pés escorregando com o suor no couro das sandálias grandes, agüentou a batida de quase duas léguas da ida e na légua e meia da volta. Descanso mesmo teve enquanto esperavam para almoçar, ouvindo o pai conversar com o Levi. Descansou mais de duas horas lá na fazenda e tanto viu coisa interessante que até tinha esquecido da canseira que seria voltar para casa. Descansar! Era isso, ver coisas diferentes do que via todo dia no terreiro de casa descansava. Descansar... A palavra começava com a letra D, igual Deus, sua avó tinha ensinado a soletrar Deus: D e E formando a sílaba DE. O diacho era as outras letras que ele não decorava o nome, só lembrava o som formado com o casamento delas. Lembrava também do formato delas, a primeira parecendo grampo de prender arame farpado no mourão, a outra era uma cobrinha toda torcida, e quando elas se juntavam formava o som que ele só sabia pronunciar porque conhecia a palavra DEUS. Precisava aprender como formar o restante da palavra DESCANSAR. DE ele já sabia, era igual o DE de Deus.

Juberto ficou com o formato das sílabas DE-US brilhando, alaranjada e esmaecendo, se tornando um amarelo pálido no escuro da pálpebra fechada. Não sabia ler mas a lembrança das duas letras que começavam a palavra descansar se confundiam com o DE de Deus dentro da retina do menino, que adormeceu vencido pelo cansaço e pela da dor no pé enfaixado.

(continua na próxima atualização)

 
 

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