O FIM DO SILÊNCIO
Débora Ferraz
 
 

Passou devagar a gilete pela pele do braço e a lâmina ia deixando uma linha incolor que logo começava a ficar bem vermelha. Gotículas de sangue. Então o liquido começava a descer e aquela sensação de sentir o sangue escorrendo era quase como morfina. A ardência que maculava aquele local em seu corpo anestesiava e acalmava seu espírito, encostava a boca e bebia para sentir o gosto. Um gosto de ferro somente comparável ao gosto de chaves antigas que quando era pequeno, colocava na boca e ficava chupando. Depois era aquele velho ritual de cobrir com a manga do moletom e secretamente sentir a dor lhe relaxar e calar a dor dos sentimentos. Sentia frio. As mãos estavam geladas, o corpo quase dormente e fraco. As pernas tremiam como se sentisse frio_ era como se fosse desmaiar e perder o fio da meada

Ele não podia cair, tomou no gargalo alguns goles longos de vodka e lembrou do que ela lhe dizia no começo: "deixe-a entrar em suas veias, e então você vai começar a sentir-se melhor". E conforme os meses iam passando, as frases mudavam e toda vez que ele sentia a dor, fazia de novo até tirar o peso do mundo das suas costas.

Ironia: No escuro as coisas pareciam ficar muito claras na sua mente, e olha que foi bem de repente quando a energia faltou. Acendeu um cigarro. Aquele silêncio típico de quando o mundo dorme lhe fazia sentir menos a dor. O teto girava e em seus lábios um sopro gelado. Era dor então, e com os laços entre seu ego e as canções (que ficavam tocando em sua mente) ele começou a sentir-se melhor.

Ela tinha lhe dito aquilo. E a frase ficou ecoando em sua cabeça. "Você devia procurar ajuda". O portão estava entreaberto, e como não enxergava muita coisa, estirou o braço e rastejou pelo batente - nenhum palmo era visível diante do seu nariz: o mundo era seu. O mundo era sua mente vazia e também escura rondando pelo áspero caminho até o portão maior. Nem lembrou de calçar os sapatos. Sozinho - o silêncio fazia com que os gritos dentro dele parecessem mais altos. Esgueirou-se até alcançar o ferrolho, mas o corpo estava tão decadente que pouco importava em que ponto da caminhada cairia sem poder levantar mais.

Ele lembrou de ter se desesperado:

- Amanda, por favor, abra a porta. - e o silêncio era a resposta

- Vamos lá, meu amor, deixa eu entrar.

Há dois anos ela fora internada numa clínica. Os vizinhos dizem que foi por causa das drogas, "Uma viciada. E o namorado é pior ainda". Mas ele sabia da verdade. Sabia que havia algo estranho em Igor naquela noite. O céu escuro resgatava o lado sublime da perfeição e a musica alta estava deixando-os malucos. Jovens demais. Eram apenas adolescentes bêbados e entediados, não podia ter acabado daquele jeito.

Ele andou sem ter fechado o portão detrás de si. O som dos passos quase feria seus ouvidos, não sabia o que devia fazer: conseguia enxergar agora o céu pesado e vermelho. Sentiu as mãos congelarem, colocou-as de volta no bolso. Na boca, a sede. Na pele, as feridas. Dentro de si um mundo inteiro inerte, vertigem, os gritos do seu pensamento, tanto existencialismo. Fora dele, o breu. Acima de si, a capa vermelha tampando o infinito.

Não podia ter acabado daquele jeito. Chegava a lembrar do dia ter amanhecido cinza. Ela disse que eram nuvens de cristal perdidas no infinito "São sombras do fim do silêncio. É tão bonito de ver" - Ela tinha falado com uma certa tristeza - seu rosto era quase uma boneca de porcelana. Os cabelos curtinhos, aquele ser dotado de paixão, de animosidade era como se fosse redenção. Amava tudo nela, quase um fascínio, mas ela estava chorando na cama. Por que não o deixou entrar?

Pobre Amanda. Ela não conseguia nem dizer o nome dele depois de ver seu rosto desfigurado. Nenhum de nós nunca mais seria o mesmo. Nós temos certeza que foi tudo por causa da depressão de Igor, ninguém lhe deu atenção e eu só me lembro de ter visto, de repente uma cerca, os estilhaços de vidro voando e Amanda ensangüentada ao seu lado.

A energia ainda não tinha voltado, mas ele continuou andando na escuridão, não dobrou em nenhuma esquina, mas o mundo preto ficava mudando de posição. Era esquerda, direita, e alguns ligeiros tremeliques. Gotas finas e geladas de água faziam sentir ainda mais frio, mas não era incômodo, mesmo assim caiu deploravelmente numa calçada e a chuva foi ficando iluminada a cada segundo, até amanhecer.

Estava calmo e claro agora, mas ainda existem recordações no asfalto onde o corpo voou longe atravessando o pára-brisa. Os rumores da solidão de Igor. Ele fechou lentamente os olhos, era como se fosse sono - seu corpo ficando totalmente dormente e uma tranqüilidade tomando seu corpo. Delirou ter visto Amanda aparecer, mas pouco importava agora. Era como se faltasse luz, mas já era dia e ele ficou no escuro de novo.

Aquele foi seu último dia de vida.

 
 

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