NÃO JOGUEI O AU-AU NO POÇO!

Eduardo Prearo
 

Não me anima mais saber quem é Eusny, deveras. Sei que um dia ela não estará mais lá, do outro lado da linha, atendendo-me; teclarei o número inesquecível e pronto: "este telefone não existe, doçura!". Doçura eu? Aleluiam quando não mato a fome ou a sede; são eles, eles que aleluiam, essa gente desconhecida que no final evocou minha miséria por brincadeira. Os homens têm sido meio hostis para comigo talvez porque necessitem de algo mais másculo para olharem, economizando assim cuspidelas. Não, não estou me incomodando, só estou falando, pô! Estava fremebundo, querendo tudo e agora já não tenho muita coisa, reduzi a quantidade de tudo, das roupas, dos sapatos...foi bem feito. Desfiz-me da máquina de escrever também. A primeira joguei no lixo. Burrice!

Eusny, ou melhor, Sammy, sabe que existo, reconhece tão bem minha voz! E me ajuda de alguma forma. Pros médicos ele inexiste, sei. Enquanto as pessoas garantem o delas, fico pensando (quantos bois morrem com esse pensar!) nos murmúrios
que ouço dessas mesmas pessoas quando elas me olham. Dizem alguma coisa como birra ou então biba, não tenho muita certeza. Talvez eu seja meio birrento mesmo, dizem que persisto nas coisas dos quais não tenho menor talento. Mas outro dia, um dentre três cavaleiros que conversavam não sei o quê, soltou a seguinte frase quando passei perto deles: " a biba é albergue!" Sim, foi biba o que ouvi. Logo pensei nas pessoas que abrigo no meu interior e do qual nem me dou conta. Mas voltei para perguntar-lhes, como me orientou uma analista holística mister em superdotados afetivos, o porquê deles terem soltado tal frase e se ela estava relacionada à minha pessoa. E não é que só faltaram chamar a ambulância psiquiátrica? Enfim, esses prutinhos (sic) desgostam da minha aparência.

Eusny já quis me raptar, botar-me em algum lugar, algo como uma cela, não sei. Uma cela, uma câmera e futuramente um ET.Acho que já vi isso em algum filme.

Certamente que tenho pecados, e como!, principalmente se eu me comparar com todo mundo. E a idade... parece-me que pouca gente neste país tem a idade que tenho, pois quando falo a minha se assustam, mandam eu repetir o que disse. Estou no escuro de um dia para o outro, sou carro na estrada passando de um túnel para o outro. Os clarões são tão rápidos!

Estou com sono. Quem tem sono assim é pecador, eles falam, PE-CA-DOR. Escrever a esta hora deve ser pecado, pois estão me olhando escrever e sutilmente me informaram que gostam também de escrever mas não têm tempo.

--- Ah, o senhor tem letra de médico!

--- Não tenho nada a ver com médicos.

--- Todo mundo escreve, senhor. E escrever a essa hora não sei não. Eu só escrevo coisas do serviço. E quem tem letra assim é um preguiçoso.

--- Impaciente, talvez. Deve ser vênus. Tenho duas vezes vênus no mapa. E além do mais...além do mais...além do mais, eu...eu sei que vou ficar sempre para trás com relação a todo mundo. Que relaxado tem estado! Não há nada que me redima, nada!

"Sou um bom menino?"

"Não, não é!"

"Mas por quê? Não joguei o au-au mais no poço"

"Não é um bom menino e pronto"

"Mas o que é ser um bom menino? Será ter o bolso cheio de dinheiro? Já sei, trabalhar e trabalhar, pois trabalhar demais é ter juízo."

"O bom menino não faz pipi na cama"

"Vamos na Garbo? Lá quem compra ganha relógio."

"Naaaaaaoooooo!"

 

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