JEQUITIBÁ
Rutinaldo Miranda B. Junior
 

O machado na parede não era apenas uma ferramenta. Representava a tradição dos Moura e Silva.Tradição essa exibida em lugar de destaque.Entre retratos desbotados de família na sala principal.Nunca se ouvira falar de outro instrumento como aquele.Era um artefato único.Forasteiro, vindo de qualquer lugar,se surpreendia ao entrar na casa da fazenda.Seus olhos ficavam atraídos pela singularidade do machado.Reluzente como prata,a lâmina feita de puro aço.Em formato de meia lua.O cabo tinha a cor de carvão.De uma madeira nunca vista por aquelas bandas.Os caboclos examinavam intrigados como uma madeira podia ser tão preta. Escutavam ser o ébano.Madeira vinda do estrangeiro.A idade daquele machado,dizia a família,ultrapassava os duzentos anos.E ninguém contestava.A sua história se fez lenda. Chegou no ombro do próprio Franscico Moura e Silva. Português chegado do além-mar.Para se fazer senhor de fartas terras na Bahia.Primeiro Moura e Silva que se teve notícia. Primeira raiz fincada no solo.

O aspecto de Francisco Moura se transmutou com o tempo. O que seus parentes sabiam do patriarca foi passado de boca em boca.Numa descrição que atravessou os séculos.Cada vez mais,recheada de atributos edificantes.Daí,os Moura e Silva conheciam Francisco com um homem fenomenal.Que dava dois de um homem comum.Forte como um sansão.Na força,derrubava um boi com a mão.Com a outra,livre,ainda dava conta de um burro brabo.Também falavam que derrubava,sozinho,centenas de arvores.Sucupiras,perobas,andirobas...,todas caíram ao seu machado.Só uma árvore Francisco não cortou.Um dia,nas profundezas da mata,ele topou com um imenso jequitibá.O português olhou com respeito o gingante verde.Tirou o chapéu.Admirou o tamanho,impressionado.Para ele,aquela era a mãe de todas as árvores.E a poupou com uma só finalidade. Da madeira do jequitibá faria o seu caixão.E assim,virou costume entre os Moura e Silva.Todos passaram a ser enterrados em madeira de jequitibá.

O passatempo predileto de Seriano Moura,ta-ta-taraneto de Francisco Moura,era ficar na varanda.Sentindo o cheiro do cacau.Suas velhas narinas ainda percebiam o aroma das bagas secando no terreiro.Cheiro agridoce.Mas,naquela manhã,Seriano não pôde desfrutar de sua recreação.Acordou com a sensacão iminente de sua morte.Sua vistas,que já eram fracas,sumiram de vez.E ele acordou tateando a escuridão tenebrosa. Chamou pelo seu filho,Rufino.A sua hora estava próxima.Tinha certeza.Para um homem,como ele,gasto pelos anos,a morte sempre dava aviso.Seriano gritou para que o acudissem.Rufino,mulher e filho entraram no quarto espantados.Somente eles,agora,moravam,na casa.Os tempos eram outros.Vida melhor se encontrava na cidade,para onde foi o resto da parentela.Seriano pediu delicadamente que a nora saísse do quarto.O neto podia ficar.É que com mulher não se podia tratar desses assuntos.Elas danavam a chorar descontroladas.Tremiam feito vara verde.Na hora da morte, nem deixavam um homem morrer em paz.Seriano encomendou ao filho o jequitibá.Rufino ouviu o pedido em pesaroso silêncio.O velho lhe ensinara o ofício.Outras vezes,saíram juntos para cortar as árvores.Morte de avô, morte de avó,de primo e de tio.Todas careceram de jequitibás derrubados.Em cada machadada,Rufino compreendia o ciclo da vida e da morte.Ajudou a fazer caixão do ser avô.Faria o do seu pai.E o seu filho estava ali,para aprender a fazer o seu.

Rufino tirou o machado solenemente da parede.Verificou a lâmina,passando a ponta do dedo no fio.Foi ao velho se certificar de sua desconfiança.O menino acompanhava tudo atentamente.Observou o ancião passar o dedo enrugado na lâmina.Os olhos sem brilho fitaram o teto.Seriano dispensava a visão para reconhecer o seu machado.Crescera com ele,aprendendo a sua importância.Admirando e tocando o seu formato.Sem dúvida,conhecia melhor a curvas daquele machado que os corpos de muitas mulheres com quem deitou. Sim,admitiu o velho,a lâmina devia ser amolada.Rufino reservou o resto da tarde para preparar o machado.Foi atrás de uma pedra de granito,posta no canto da sala.Guardada ali unicamente para essa função.Levou a pedra para o terreiro.O filho o seguia curioso.Com todo zelo,roçou a lâmina na rocha.Era um trabalho cuidadoso.Cheio de astúcia.Da esperteza de um madeireiro.Que teria à sua frente um Golias de madeira para sacrificar.Aquele machado podia derrubar facilmente qualquer árvore.Mesmo com a lâmina embotada.O aço rasgava a madeira,impiedoso.Mas,com o jequitibá era diferente.A planta mostrava valentia.Sangrava uma seiva escura.Resistia ao machado.Ignorava a supremacia do seu metal.Seus golpes,abafados pela densa madeira,terminavam num som oco.Por mais forte que fosse o homem, não derrubaria o jequitibá sem uma lâmina aprumada.Sem o golpe impiedoso e contínuo num ponto preciso.Sempre a cinco palmos da raiz.No calcanhar de Aquiles do jequitibá.Onde a seiva se concentrava,enfraquecendo a madeira,antes subir até a copa.Confiante apenas na sua força,o caboclo desistiria,no meio do serviço.Totalmente exausto.Com os braços doloridos.De uma dor semelhante à queimadura de fogo.Causada pelo esforço descomunal.E o jequitibá,mesmo ferido,sairia vencedor.

Após verificar o fio de corte em várias direções,Rufino se deu por satistfeito.Gastou boa parte do dia amolando o machado.Num arrastar de intermináveis horas.A tarefa não servia para um homem qualquer.O sujeito tinha que ser, acima de tudo,paciente.Para afiar a lâmina sem deixar arranhão,Rufino passou inúmeras vezes o aço na pedra.Chap, Chap,chap...Num vaivém enfadonho.Mas,com carinho,bem de leve.Ou poderia danificar a beleza da ferramenta.O seu reflexo de espelho.E isso não admitiria acontecer.Aprendeu desde novo a zelar do machado.Afinal,tinha em mãos a tradição da família.A ser seguida pelo seu filho.Que via e aprendia a conservar o costume para outras gerações.É claro,se elas honrassem a tradição.Repudiassem o exemplo de alguns traidores.Tios e primos que debandaram pra cidade. Abandonando a família naquele ermo.Mas,Deus era pai!Eles recebiam o merecido castigo de descerem à terra em seus caixões ordinários.

O velho Seriano passou o dia na cama.De que adiantava sair do quarto se tudo era escuridão?A vida,para ele,perdeu a graça com as trevas.Além do mais,se sentia muito fraco. Aquela dor no peito,que apareceu de repente,lhe tirava o ar.Já não sentia o cheiro do cacau,apesar saber que bagas secavam no terreiro.Nunca duvidara que o fim de todo homem era triste.Que essa a vida passava rápido demais.Ainda lembrava que quase ontem fora menino.Correndo entre pés de cacau.Depois,rapaz vaidoso.De brilhantina nos cabelos negros.Lorde no seu terno de linho branco.Namorando as caboclas jovens sobre as folhas secas.A saciar o desejo que despontava intenso nos corpos viçosos.De pele acobreada. Suor gostoso.Que vem do calor de fêmea desejosa.No cio.Suor que gruda na carne torneada.Pois,o melhor amor é aquele feito sobre as folhas de cacau.Naquele tempo,ainda podia abraçar seu pai e sua mãe.Mas a vida que lhe trouxe alegria também o feriu de tristeza.O menino que se fez homem por fora,sem de todo deixar de ser menino por dentro,viu seu passado desaparecer.Pais mortos.Irmãos perdidos no mundo. Saudade dolorida na alma,Tudo mudou.Só o cheiro do cacau permanecia o mesmo.Acordando com ele todas as manhãs. Agora,nem isso tinha.A tristeza que o invadiu o velho menino não encontrava palavras para descrever.

O machado foi entregue a Seriano.Suas mãos enrugadas tatearam o aço minuciosamente.Pele morna sobre o metal frio.Aveludada pela velhice.Aprendendo com o tato a enxergar no escuro.Rufino ouviu uma voz debilitada elogiar o corte da lâmina.Então,observou como a saúde do velho se agravou.Pela manhã,logo cedo,sairia à procura do jequitibá. Incumbiu a mulher de mandar aviso aos parentes.Que viessem da cidade.O caso era de maior urgência.Morte que chega certa.Sem esperança.Só afastada por força divina.E,naquela noite,a mulher iluminou o oratório com duas velas.Uma aos pés do Cristo.Nosso Senhor.Outra,aos pés da sua santa favorita.A Santa Barbara.Intercessora dos enfermos e agonizantes.Dos que,no seu desespero profundo,encontram na fé o alívio.Santa muito requisitada por aquelas bandas,onde visita de médico era luxo de coronel.

Rufino acordou antes do dia clarear.Antes mesmo do galo soltar seu primeiro canto.A mulher ficou na cama dormindo.Varou a noite em orações.O menino também estaria ressonando no quarto ao lado.Rufino foi cozinha,preparou um gole de café.Colocou água fresca no cantil.Botou alguns pães na capanga.Em cima do armário,encontrou o rifle e a cartucheira.Carregou a arma com um cartucho de grossa munição.Feita de bolas graúdas de chumbo.Que abatiam onças num grande estrondo.Único tiro,quando certeiro,deixava a bicha estirado no chão.Qualquer quer fosse o seu tamanho. Rufino colocou o rifle no ombro.Pegou o machado.Abriu a janela.O tempo tinha fechado.Nuvens escuras encobriam o céu,iluminadas por fortes relâmpagos.Cairia um senhor toró. Rufino pensou que não seria uma boa idéia acordar o filho e levar junto.A chuva crescia os perigos da mata.E lhe pesava a certeza que,de agora em diante,o menino seria o seu único sangue a lhe fazer companhia.Pensou em pedir a benção do pai antes de partir.Mas,o velho estava muito fraco.Melhor que dormisse em paz.Rufino saiu para a varanda e teve uma surpresa.Em pé,recostado no corrimão de escada,estava o garoto.Vestido de calça e camisa longa para se proteger dos galhos cortantes.Bota de couro para as picadas de cobra.E também seu pequeno chapéu de palha.Acordou antes que o pai. Até parecia um homenzinho feito.Mas Rufino escondeu o riso. Fez uma cara muito séria e falou que ele não iria.Apontou o céu para justificar sua decisão.A tempestade se aproximava. Seria muito arriscado ele ir.Paciência.Depois que todo aquele infortúnio passasse,entrariam mata.Lhe ensinaria a derrubar um jequitibá.E assim,aprenderia a derrubar qualquer árvore.O menino não contestou a ordem do pai Entretanto,era visível a sua tristeza.Retornou para a cama cabisbaixo.A aurora começava a aparecer.Rufino aguardou por mais um pouco de luz.O suficiente para rumar,apressado,em direção à floresta.

A mata surgia no horizonte,após as roças de cacau.Seis horas de caminhada.Troncos e cipós por todos os lados. Rufino encontrou todo tipo de árvore, menos os jequitibás. Onde estariam eles?,pensou Rufino.Não existiam mais tantos jequitibás como antes.Os homens cobiçavam sua valiosa madeira.Muitos deixaram de trabalhar nas roças de cacau para derrubar os troncos.A madeira do jequitibá estava cotada a preço de ouro.No porto da cidade,suas tábuas seguiam para a Europa.Fazendo a alegria dos caboclos,que viviam cheios de dinheiro.Pegando sífilis nos cabarés. Cirrose no bares.Rufino nunca pensou que os jequitibás,um dia,pudessem desaparecer das matas.Eles estiveram por toda parte.Agora via,entristecido,que estava errado.Nem mesmo as árvores menores foram poupadas.Caíram todas pelo dinheiro. Se ele quisesse encontrar um grande jequitibá só tinha um jeito.Teria que ir longe,no coração da floresta.Onde até os caboclos mais experientes não colocavam os pés.Lugar infestado de onças.Mas isso não era o pior.Os homens se acertavam com as onças na bala.O que apavorava os caboclos era topar com um bicho bem pior.Que nenhum tiro dava jeito.A Caipora.Que uns diziam ser filho(ou filha,ninguém sabia) do capeta.Uma assombração que tinha os pés virados para trás.Matava aqueles que iam caçar seus bichos ou derrubar suas árvores.Corria de boca em boca o triste destino dos que resolveram desafiar a aparição.Foram para a mata e nunca mais retornaram.

Rufino lembrou do pai.Tinha uma obrigação a fazer. Certificou-se que o rifle estava bem carregado.E entrou mais na floresta.Já era pra lá de meio dia.Seu estômago pedia comida.Mas Rufino ignorou a fome.Precisa encontrar logo o jequitibá.As nuvens escureciam a mata.As copas das árvores,maiores naquela região,também.Os flashes dos relâmpagos vinham num clarão azulado.Um milagre a chuva ainda não ter caído.Rufino caminhava alerta.De ouvido atendo em ruídos estranhos.Para onça ou assombração que aparecesse em sua frente,apertaria o gatilho.Beijou o crucifixo no peito e se benzeu.Foi pisando de mansinho. Ouviu um barulho de água corrente.Mais alguns passos, encontrou um córrego.Tomou uns goles de água fresca.Pisou em pedras para não afundar a bota na água.Pedras esverdeadas,cobertas de limo.Rufino nem percebeu quando escorregou.Sua bota afundou entre duas rochas e seu corpo tombou para o lado.Imediatamente soltou um grito de dor.Seu berro ecoou pela floresta.O pé foi torcido.Nesse momento,a chuva desabou.Uma intensa cortina d'água caiu sobre as árvores.A mata se pintou de cinza.O rifle se partiu na queda.Agora,a arma nada valia,mais atrapalhava.Rufino a abandonou dentro do riacho.Para sempre perdida.Quem virou bengala foi o machado.Rufino se apoiou na ferramenta,tirou o pé do buraco.Um desespero tomou conta do seu o coração.O que faria agora?Naquelas condições,não podia derrubar um jequitibá.Decidiu voltar pra casa.Pediria ajuda aos parentes.Eles chegariam no dia seguinte.Na parentela havia homens de força para o serviço.Não se negariam a cortar a árvore.Rufino ansiava para que,pelo menos,o pai durasse mais um pouco.Para que não fosse necessário ser enterrado num caixão comum.Seria o fim de toda uma tradição.Se isso acontecesse,Rufino amargaria o seu fracasso.Remorso a ser carregado pelo resto da vida.

A dor castigava o tornozelo.E,cada vez que o pé tocava o chão,o sofrimento ficava insuportável.Doía na alma. Certamente,algum osso se partiu.A chuva permanecia violenta.Rufino tinha que encontrar um abrigo.Seu corpo estava encharcado.As copas vertiam gotas imensas.A fraca luz logo se tornaria escuridão.Foi um tormento sair das pedras.Umas se amontoavam sobre as outras.Não davam espaço para pisar.O pé machucado doía ao menor toque na dureza das rochas.E o medo de um novo escorregão,atrasou a caminhada, na escolha meticulosa de cada passo.Rufino,finalmente,pisou sobre o chão fofo,coberto de folhas mortas.Menos mal,ali o pé doía menos.Ele se sentia extremamente cansado.Saiu mancando pela floresta.Se enroscando nos cipós.E grande foi a surpresa ao se deparar com um gigantesco jequitibá.O maior que ele já viu.A árvore vingara no coração da mata. Seu tronco só podia ser abraçado por muitos homens.Nela, havia uma grande reentrância.Grande o suficiente para alojar uma pessoa.Rufino não pensou duas vezes.Se instalou no jequitibá.Juntou as folhas secas,que encontrou dentro da árvore,num canto.Formariam sua cama.A chuva ainda demoraria a passar.A escuridão foi tomando conta da floresta.Já não se podia distinguir vultos mais distantes.Rufino sentou sobre o amontoado de folhas.O machado foi posto ao alcance das mãos.Naquele seu refúgio,dentro do jequitibá,ele ficou escutando a chuva banhar a floresta.

Depois que o sol se foi,não dormiu.Não podia se dar a tal luxo.Rufino sabia que as onças,como grandes felinos, vagavam confiantes pela escuridão.Enxergando melhor no escuro que durante o dia.Atacando suas vítimas sem dar a menor chance.Como sombras na noite.Ele olhava para todas as direções com o rifle engatilhado.Mas a escuridão era muito intensa.As copas das árvores ocultaram a lua.A floresta tinha mergulhado nas trevas.Por horas a fio,antes que amanhecesse,nada conseguiria ver.Estava cego,como o seu pai.

Grandes e pequenas poças surgiram por toda a mata.Em direção a elas,uma multidão de sapos e rãs saiu de suas tocas.Logo,apareceram chiados de todas as qualidades.Graves e agudos,altos e baixos.Que se mesclavam num barulho ensurdecedor.Entretanto,na madrugada,um rugido silenciou a floresta.Os sapos e as rãs se calaram.Apenas o som da chuva caindo sobre a folhagem permaneceu.Rufino não teve dúvida. Era onça.Escutou outro rugido.E mais outros.Então,gelou por dentro.Uma não,mas várias onças rondavam o jequitibá. Encolhido,Rufino esperou a morte.Mas a morte não veio.Os rugidos duraram a noite inteira.Quando o dia clareou,as onças sumiram.Apenas chuva continou.Forte,incessante.Sem sinal de trégua.

Uma densa neblina apareceu ocultando as árvores.Frio. Rufino deitou e se encobriu com folhas.Mas não tinha sono.Seus sentidos estavam atentos como de um bicho acuado.Ir para casa,se arrastando pela mata como o pé quebrado,nem pensar.Era suicídio.As onças tinham o faro apurado.Sentiriam seu cheiro,principalmente naquela situação.Sem tomar banho.Fedendo igual a um cachorro rabugento.Com roupas molhadas de chuva e suor.As onças seguiriam fácil o ser rastro.Ele viraria comida de gato.Não,nem pensar.Era homem vivido na mata.Experiente em reconhecer as suas armadilhas.A solução consistia em ficar ali,dentro do jequitibá,até vir socorro.Quando aquela chuvarada cessasse,acenderia uma fogueira com folhas verdes.A fumaça subiria pelas copas chamando a atenção.Com três dias de sumiço,certamente,já havia homens vasculhando o mato à sua procura.

Na solidão da mata,os minutos de espera viravam horas. Rufino sentiu fome.Meteu a mão na capanga.Encontrou farelos de pão molhados.A massa,em contato com o couro molhado, pegou um gosto azedo.Porém,a fome o obrigou a comer mesmo assim.Rufino lutava contra o desespero.Sua cabeça se inquietava de tanto aguardar.Que diabos de chuva era aquele que não passava?E o pai,será que ainda estava vivo?Lá,na fazenda,sua mulher devia estar preocupada.Para ele,Rufino, com certeza,também já havia duas velas no oratório.E o menino?Devia estar na varanda,com olhos perdidos na mata,esperando que ele chegasse.De repente,sentiu uma vergonha.Vergonha de ter medo.O grande medo que sentia.De morrer esquecido naquele fim de mundo.Seus olhos começaram a marejar.A vontade de chorar veio intensa.E ele não prendeu.Ali,sozinho naquele ermo,começou chorar.

Mais uma noite.A floresta desapareceu novamente na escuridão.Dessa vez, os rugidos não demoraram a aparecer.As onças grunhiam a pouquíssimos metros do jequitibá. Certamente,elas enxergavam Rufino.Ele percebia as silhuetas enormes indo e voltando.Mas por que elas não o devoravam?Rufino não sabia responder.Só podia ser milagre.Beijava freneticamente seu crucifixo.

Dor intolerável o acordou no terceiro dia.O pé inchado,comprimia a bota.Pulsavam as veias do tornozelo.A chuva desapareceu.E,de novo,as onças.Além das copas,o céu se revelava claro e azul.Rufino tratou de se apoiar no machado.Arrancar folhas de trepadeiras.No bolso,encontrou a caixa de fósforos ainda seca.Quase chorou de tanta alegria. Arrastou-se alguns metros e acendeu a fogueira.Uma coluna de fumaça branca subiu entre as árvores.Então,Rufino voltou para sua toca e se recostou no tronco do jequitibá.Tinha muita sede.Esvaziou o cantil em grandes goles.Uma forte sonolência invadiu sua cabeça.Tirou seus sentidos.Rufino dormiu.E teve um sonho que se lembraria pela vida inteira.

Uma pequena semente caiu do céu sobre um deserto sem fim.Formado por uma terra ressacada pelo sol.Cheia de pequenas rachaduras.Da semente,saiu um minúsculo broto.O broto sofreu com o insuportável calor.Suas folhas murcharam,mas a plantinha não morreu.Dias e noites se passaram em segundos aos olhos de Rufino.A planta, obstinada,lutou para crescer em meio àquela desolação. Lentamente,foi ganhando corpo.Novas folhas surgiram.A sombra que foi cobrindo a terra,deu vida ao solo.E a teimosa sementinha venceu o deserto.Se transformou num gigantesco jequitibá.Tão alto que suas folhas chegavam próximo das nuvens.Então,algo mais estranho aconteceu.O jequitibá pegou barriga.Uma enorme barriga,como de mulher.A árvore começou a se retorcer em dores de parto.A casca rachou.Das sua entranhas,nasceu um homem feito. Completamente nu.Que escondia de Rufino o rosto com as mãos.Rufino tentou ver quem era o homem.Mas,ele continuava a ocultar o rosto.Quando,finalmente,decidiu se revelar, Rufino teve uma grande surpresa.A maior de todas.O homem era ele mesmo.Nu e amedrontado à sua frente.Perdido naquele sonho absurdo,Rufino acordou com uma mão lhe sacudindo o ombro.Era seu filho.O menino veio com o grupo de homens que entrou na floresta para resgatá-lo.

Na manhã em que Rufino entrou na mata,seu pai acordou morto.E a morte lhe foi generosa.Levou o velho no seu sonho de menino.A brincar eternamente entre seus pés de cacau.Os parentes foram avisados e chegaram da cidade no mesmo dia. Aguardaram Rufino trazer as tábuas de jequitibá para o enterro.Mas,Rufino não apareceu.O corpo do velho ficou mais uma noite sobre a cama.Na manhã seguinte,todos acharam por bem enterrar logo o defunto.Pela primeira vez na fazenda,um Moura e Silva desceu à cova sem a companhia de um jequitibá.Em caixão de pinho,comprado às pressas na cidade. O sepultamento aconteceu em meio a uma angústia dissimulada.Silenciosa.Que aflorava na cumplicidade de cada olhar preocupado.O sumiço de Rufino parecia anunciar uma nova desgraça.Todos repeliam a insistente idéia que martelava em suas cabeças.Provavelmente,teriam que fazer mais um enterro.Ou enterro nenhum,apesar da morte se fazer presente.É que muitos homens desapareciam na floresta,sendo jamais encontrados.O povo tinha medo de tocar no assunto. Era um tabu.Trazia má sorte.Apesar de todos saberem do que se tratava.Sumiço de um homem na floresta só podia ser obra da Caipora.E tocar no nome dessa assombração,segundo os mais velhos,era garantia de topar com ela em futuro bastante próximo.

Para encontrar Rufino,homens se reuniram em grupos para vasculhar a mata.As buscas foram inúteis.Eles caminharam durante todo o dia em meio às árvores.Debaixo de chuva forte,todos os caminhos pareciam iguais.Os gritos eram abafados pelo barulho das gotas.Caindo incessantemente sobre a folhagem.Sobre o solo.Mais de uma vez, os grupos se encontraram.Dando a certeza de que vagavam em círculos.No final da tarde,postado na varanda,o menino acompanhou entristecido os homens retornarem.Um a um, chegaram exaustos,enchar-cados e sem o seu pai.

As conversas em voz baixa davam conta que,com aquele tempo,Rufino jamais seria encontrado.Até alguém pronunciar o nome de Remião.O maior conhecedor daquelas matas.O homem mais velho que se conhecia.Diziam os caboclos que ele fora escravo no tempo do Império.Tão velho que Seriano Moura,o velho defunto,quando menino lhe pedira a benção.Também, corria de boca em boca que o preto tinha mais de cento e trinta anos.Uma lenda que só os mais idosos levavam à sério e juravam ser verdadeira.Pois,viam assombrados aquele homem atravessar as décadas sem que uma nova ruga lhe despontasse no rosto.Essa longevidade surpreendente dera a Remião fama de feiticeiro.Apesar de nunca ter sido flagrado com uma galinha escura debaixo do braço,diziam que sua mandinga era das mais poderosas.Que o velho fizera trato como o demo.Até que costumava abrir um enorme buraco no chão para visitar o seu "compadre".Assim, todo mundo que topava com ele pelo caminho,suava frio.Curvava a cabeça em solene respeito. E,principalmente,temor.

Remião foi chamado.Apareceu na fazenda naquela mesma noite.Veio caminhando mansamente,debaixo de um grande guarda-chuva..A uma boa distância,os homens perceberam seu vulto surgir na escuridão.Era muito alto.Seu corpo magro se curvava para frente.Vestia roupas de saco de algodão. Brancas como sua carapinha.Que lembrava um capacete alvo sobre a cabeça negra.A sua chegada trouxe silêncio.Muitos o olhavam com admiração.Como se aquele velho magricela fosse uma criatura sobrenatural.Remião entrou no varanda, fumando seu inseparável cachimbo.Cumprimentou a todos.E todos responderam ao seu cumprimento.Os homens,que no dia seguinte novamente entrariam na mata,ficaram confiantes.Se o velho feiticeiro veio se juntar a eles é porque Rufino ainda estava vivo.Isso,com certeza,o preto sabia. Ou não perderia sua viagem.Afinal,como diziam os caboclos,era homem-bruxo.Do qual se ouviam coisas fantásticas.Que sabia conversar com as árvores.Domar onça braba só com o olho. Dizer rezas antigas em língua da África que mudavam o tempo.E o mais importante.Remião não temia a Caipora.

O velho não aceitou pouso.Pediu uma cadeira para ficar sentado na varanda.Queria passar a noite ali.Olhando a chuva que caía na floresta cujas árvores despontavam no horizonte.Os caboclos murmuravam entre si que o velho queria falar com a mata.Incrível explicação que ninguém ousou contestar.A mulher de Rufino trouxe uma xícara de café.Remião lhe agradeceu com um largo sorriso.Os homens voltaram a bater papo até a meia-noite.Quando foram curar o cansaço,estirados sobre velhos colchões.Remião ficou olhando a floresta.A mulher de Rufino também não dormiu.Há duas noites estava acordada.Tinha os olhos inchados e vermelhos.A cada hora,cuidava de servir o velho.Ele parecia em transe.Com os olhos perdidos num ponto longínquo.Tomando café sem contrair o rosto.Já era alta madrugada quando a mulher veio, arrastando os chinelos,trazer mais café.O velho falou:

-Vai dormir,filha.

A mulher começou a chorar desesperada.Então,o homem-bruxo lhe mirou olhos negros,muito vivos.

-Ele tá morto não.

Pela primeira vez,durante dias e noites que pareciam não ter fim,a mulher sentiu alívio.Conseguiria deitar e dormir. Ela acreditava no velho.Conhecia sua fama de mago.Sabia que não era homem ruim.Ao contrário,o feiticeiro sempre esteve disposto a ajudar quem o procurasse.Como ela,que um dia lhe pediu ajuda.Ainda moça,indagou a Remião como conseguir um marido.Para sua surpresa o velho não lhe indicou nenhuma simpatia.Nenhuma galinha preta que devesse depenar em noite de lua cheia.Apenas pediu que anotasse o dia e hora.Que ela deveria tomar banho pelada numa certa lagoa.Assim ela fez. Assim Rufino se deslumbrou,ao vir de uma caçada e topar com aquela moça em pêlo se banhando.Linda como uma sereia.

Pela manhã,os homens acordaram com Remião sentado na cadeira.O céu estava azul.No seu colo,estava o filho de Rufino.O menino acordou antes de todos para falar com o velho.Após uma rápida refeição,os homens esperaram as ordens do bruxo.Que anunciou guiar um só grupo pela mata. Todos concordaram.Afinal,todos queriam entrar na floresta junto com ele.Protegidos pelo seu poder,caso tivessem a infelicidade de topar com a famigerada Caipora.O velho pediu a palavra.Tinha mais algo a dizer.Daquela vez,eles também levariam o menino.Alguns homens franziram a testa. Uma criança só iria atrapalhar as buscas.Remião atalhou os descontentes.O menino tinha que ir.Até porque tinha o mesmo sangue do pai.E o sangue de um,poderia atrair o do outro. Alguns homens coçaram a cabeça tentando compreender aquelas palavras.Mas,foi uma tentativa inútil.Resolveram acatar o velho.Que de bruxo ali só havia ele.

A caminhada pela floresta já durava várias horas.O velho ia na frete do grupo.Nem parecia ser um homem de idade.Caminhava rápido.Não pedia descanso.Os outros homens abriam caminho pela mata com seus facões.O velho,não.Sabia se esgueirar pelas plantas como uma cobra.No final da fila, o menino se apressava para acompanhar o grupo.Todos,menos aquele velho esquisito,já mostravam sinais de cansaço. Então,o negro lhes deu meia hora de repouso.Os cantis foram esvaziados.A mata estava quente.O suor grudava as roupas no corpo.Um pé de abacate surgia mais à frente.Os homens não acreditavam como um abacateiro fosse estar ali.No meio da mata.Obra da Caipora,certamente.O menino resolveu subir para catar algumas frutas.Parecidas com enormes gotas verdes.Tirou algumas e jogou aos homens.Que já não achavam tão má idéia a companhia do menino.E do alto da copa,o garoto viu uma branca fu-maça subir ao céu.Enfim,encontrou seu pai.

O menino foi o primeiro a encontrar e abraçar Rufino. Que acordou um pouco desorientado.Ele também abraçou o filho.E chorou muito,igual criança.Remião se aproximou do enorme jequitibá contente.Olhou a planta com saudade.Eram velhos conhecidos.Os homens ficaram impressionados com o estado de Rufino.Estava sujo,molambento,cheirando a urina de macaco.Soluçando,desesperadamente,abraçado ao filho.

-Deixa chorar-disse o velho aos homens que viam a cena penalizados.E acrescentou:

-Nasceu da árvore.

Os homens não deram atenção àquele comentário.O velho bruxo falava coisas muito estranhas.Resolveram improvisar uma maca de cipós.Rufino foi colocado na maca.Alguém lhe contou que seu pai estava morto.Que o enterro acontecera há um dia.Seu filho trouxe o machado,que encontrou dentro do jequitibá.Rufino olhou a ferramenta demoradamente.Em seguida,pediu que o menino jogasse no riacho pelo qual passariam.Era o fim de uma tradição.Rufino sabia de sua dívida com aquela árvore.Um remorso lhe afligia o coração. Ele veio como seu carrasco e ela o abrigou dentro de si mesma.Como um útero.Onde o protegeu da chuva.Da terrível morte de ser devorado pelas feras.De todos os presentes, Rufino foi o único a entender as palavras de Remião.A orgulhosa tradição dos Moura e Silva,para Rufino,nada mais significava.O que valia a pena mesmo era voltar para casa.Celebrar a vida com seu filho e sua esposa.As únicas coisas impotantes que lhe restaram na vida.E que todo aquele sofrimento o fez valorizar mais.

Os homens o acomodaram sobre a trama de cipós.Enquanto olhavam perplexos o jequitibá.Certamente,era a maior árvore que já viram.Rufino sabia que eles voltariam de machado na mão.A madeira daquele jequitibá valia uma fortuna.Nada aplacaria a ganância ali despertada.A não ser uma coisa.O medo.Assim,Rufino contou a versão de sua história.De como a Caipora o perseguira pela mata e lhe quebrara o osso.Uma besta-fera de boca enorme,olhos vermelhos como brasa e corpo cabeludo.Do tamanho de dois homens,no mínimo.Todos, menos Remião,ouviram a narração boquiabertos.Rufino também contou o que ninguém entendia.Como é que estava vivo?Simples.No auge do seu desespero,ele se escondera no jequitibá.Descobrindo a única coisa que espantava a caipora.Então,os homens olharam respeitosos,e um tanto gratos,para a árvore.Que para eles,agora,tinha se tornado sagrada.

Remião ouviu,satisfeito,Rufino contar sua lorota.Os homens não derrubariam mais jequitibás.A missão de Rufino, que ele mesmo desconhecia,foi cumprida.Se não fosse por ela,seria mais um entre os mortos da floresta.

Os homens se afastaram,levando seu ferido.O menino ainda olhou para trás e viu Remião inerte,em frente ao jequitibá. Até parecia conversar com a árvore.O velho começou a ficar mais distante.A desaparecer entre os milhares de troncos. Sem que os homens,apenas o menino,percebessem.Dali a pouco, a escuridão chegaria.O velho precisaria estar sozinho.Para escutar melhor as árvores.Acariciar as onças.E,finalmente, a Caipora.

 
 

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