EU CONFESSO
Bárbara Helena
 

“For rain that’s fallen
Halfway down the sky
...For sunlight burning holes

in through your eyes"

Eu amei Billie desde sempre.

Sempre significa um show de rock em Cachambi. E isto foi há tanto tempo que é como se a vida não tivesse existido antes daquela noite.

E não existiu mesmo.

Às vezes penso no que teria sido de mim se tivesse desistido de ir ao show por causa do temporal que ameaçava desabar. Mas foi justamente porque amava tanto a música que nunca deixaria de ir. E nem recusaria o convite de Edvaldo, meu Billie, o dente de ouro brilhando entre os outros, brancos e ligeiramente separados, o cabelo comprido e a promessa e me emprestar uns discos de blues e me ensinar a tocar guitarra.

Saímos debaixo da chuva, no final do show, entre a correria dos adolescentes patinando na lama, rindo e brincando, excitados pelos decibéis a mais e pela performance desafiadora dos cantores de roque suburbanos.

Ambos blueseiros , coisa anacrônica já naquela época.

A adolescente magra e alta que eu era, se apaixonou perdidamente - primeiro pelos LPs dos nossos mestres – BB King, a Holliday (de quem Billie tirara o nome artístico), Janis, Ella, Sarah, os discos de jazz de Thelonious, o piano de Peterson. No seu pequeno conjugado do subúrbio, viajávamos para terras desconhecidas, enquanto sua guitarra me fazia ver a lua quase escondida pelos prédios e eu começava a cantar, timidamente, imitando a verdadeira Billie. Procurando uma rouquidão e a intensidade que só a vida iria me dar. A vida e o sofrimento. Mas naquela época eu era apenas sonho e esperança. E amor.

Billie nunca me enganou. Sempre me tratou como amiga e acreditou que era apenas isto que eu esperava dele. Quando Marina se juntou a nós, na primeira e tímida formação dos Cigarette Blues, o meu mundo desabou. Billie se apaixonou perdidamente pelos cabelos luminosos dela, sua beleza de artista, os olhos azuis úmidos e a voz deslumbrante que também imitava a Holliday, mas com mais competência e semelhança.

Nosso trio acabou com a intimidade das noites de conversas e aulas, envenenou o pouco que eu tinha dele, me transformou em espectadora de uma paixão da qual não participava, cão faminto esperando sobras da mesa farta dos que podiam comer.

Não que Marina tenha jamais correspondido a Billie. Ela nos usava como trampolim para ser vista. Garota pobre com alma de estrela, seu sonho era através dos Cigarettes conseguir realizar a paixão pela única pessoa que amou em toda vida – ela mesma.

Não sei porque não nos abandonou. Creio que nunca entendi totalmente Marina. Pode ser que também amasse de verdade nossos esfarrapados e tristes blues.

Talvez amasse Billie também, mas aquela ligação poderia atrapalhar sua caminhada em direção às luzes da ribalta estrangeira.

Marina é grega para mim, fora do meu planeta, astro que órbita esferas onde nunca penetrei.

A chegada de Mimi foi uma benção e um problema. Ao contrário de Marina, tudo nela era claro, explicado, demonstrado à exaustão, vísceras a mostra, Mimi era a pessoa de coração mais exposto que conheci: intensa, absoluta, errando e acertando com uma violência que me assustava e encantava. É minha melhor amiga, a única pessoa com quem partilhei minha paixão e a única que nunca a entenderá. Não é capaz de compreender desistências ou segredos.

Tem uma voz que lembra Janis e se tornou cover dela. Já era conhecida de alguns fregueses, cantava em boates do subúrbio com sensualidade e um corpo de sereia que não hesitava em usar para seduzir a platéia.

Foi uma bela aquisição. Com ela completamos os Cigarette blues – nome que nos parecia lindo, sofisticado, parecido com nossas almas errantes. Todos fumávamos e bebíamos como profissionais e Billie já puxava o fumete que o levaria ao pó e a quase destruição.

Caímos na estrada pensando que haveria blueseiros por todo este Brasil caipira. Não havia. E aprendemos a tourear platéias com musicas que detestávamos para no final embalar alguns poucos amantes autênticos da nossa verdadeira música e os que sobravam soluçando amores perdidos ou a vida jogada fora.

Tivemos também alguns fãs apaixonados e foi por causa destes que continuamos, apesar de tudo

Mas eu estava falando de Billie, você está entendendo?

Ele acenou com a cabeça, sorriu uma simpatia de bêbado e eu continuei, amparada pela Tequila.

Foi Mimi quem me incentivou, anos de estrada depois, a confessar meu amor a Billie. Foi na época em que tivemos a única noite de amor de nossa história, mas esta não vou contar aqui, dói muito – solucei, um pouco pelo álcool, um pouco pelo sofrimento.

Mimi não se conformava que eu deixasse Billie escapar pelos dedos em direção a uma Marina egoísta e inalcançável: “ Você também é bonita, os homens uivam por você, por que esta falta de confiança? “

Eu não via tantos homens uivando por mim. Tive alguns apaixonados na estrada, é verdade, mas nada comparável a Mimi ou à Marina. E se eu mesmo não gostava de mim, como esperar o amor alheio? Merda de vida. Mas Mimi não desistia, me atormentava, me empurrava, me convencia, me iludia, me fazia sonhar com suas mentiras de camelô do amor.

Até que um dia, talvez pela lembrança de nossa noite juntos, talvez pela lua cheia, talvez para me livrar da cantilena dela, talvez para me livrar de mim mesma e das minhas esperanças, resolvi me abrir para Billie. Me abrir da única forma que faltava.

Estávamos no café e nas cervejas, depois do show, conversando na mesinha fora do trailer. Marina dormia, Mimi se retirara com mil sinais encorajadores e eu estava sozinha com Billie e a lua.

Já tinha tomado umas garrafas para criar coragem e ele também. Deitou no meu ombro e começou a acariciar meus seios, bem de leve.

Como uma torrente há muito represada, derramei sobre ele toda minha paixão recolhida, desde que o conhecera naquele show de rock longínquo em Cachambi. Com voz embargada e entrecortada, tropeçando nas palavras, tamanha a minha ânsia de colocar pra fora, de vomitar aquela verdade engasgada, contei tudo – o medo, as humilhações, a dor, o ciúme, a paixão, a felicidade do seu corpo, a ternura, todas as emoções que se resumiam a uma coisa tão simples e natural : amar o meu Billie.

Depois parei, sufocada, sem ar.

A lua estava amarela e intensa sobre mim e eu tremia, as lágrimas escorrendo como cascata.

Billie não respondeu.

Assustada, sacudi seu corpo e percebi que dormia... dormia, o desgraçado! Não ouviu nada, não percebeu nada da minha confissão apaixonada. Mas talvez fosse melhor assim...

Parei de falar e vi que o outro também dormia, a cabeça na mesa, o sonho beatífico dos bêbados. Dei pra isto agora. Confessar meus pecados com os fregueses. São melhores que os padres. Nada ouvem, nada dizem, não julgam nem dão penitência. A penitência é viver.

Merda de Mimi e suas ilusões baratas tão caras.

Empurrei o cara da minha frente, levantei da mesa e voltei para o palco. Billie acabara seu show de guitarra. Marina iniciava outra música, com sua rouquidão incomparável, depois veio Mimi, procurando não me olhar, a cadela.

Marina continuava, de olhos fechados, suavemente:

"For rain that’s fallen
Halfway down the sky
I apologize
For sunlight burning holes in through your eyes
I apologize”

Eu peço desculpas.

A guitarra gemia e nós fazíamos o backing repetindo

I apologize... I apologize...

Senti uma dor funda no peito mas não parei de cantar. Lá fora havia uma lua morrendo e eu sabia. Era só o que sabia. Na mesa, o desgraçado ainda babava. Dormiria por todos os séculos até despertar no inferno. Como todos nós.

 

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