SEGREDO
Luciana Priosta
 
 

O cuco ainda não bateu duas horas e eu irrequieta andando de um lado para outro da cozinha. Abre-fecha geladeira, puxa gavetas, desarruma e arruma armários. De soslaio espio a porta da sala. De olho nas criadas. Se me pegam nesse frenesi vão logo perguntar o que tenho. Madame confia em mim, tenho que mantê-las na linha. Sou uma boa governanta, eu sei. Um gole de cachaça poderia me acalmar agora. É muito estranho beber sozinha assim no meio do dia. Além disso, eu não gostaria de me anestesiar justo hoje.

Seria muito difícil viver sem comedimento. Quanto tempo ainda? Meu Deus mais duas horas e enlouqueço! Nos quartos, tudo em ordem, roupas guardadas, nem um fio fora do lugar. Levar o lixo para fora, tomar um ar, mas o sol está inclemente! A vida em sua rotina sem sobressaltos. Tudo absolutamente previsível, controlável, manso. Eis a chave da verdadeira felicidade. Assim administro essa casa. Assim administro a mim mesma. Pautei toda minha vida nessa crença. E sou muito feliz! Ora sim senhor! Vou regar as plantas da varanda. Os cristais estão impecáveis. Se não fosse a santa rotina, seria muito difícil viver.

De volta à cozinha, leão enjaulado, vou cavar um vale junto a pia. Às vezes sinto vontade de me atirar pela janela, maldita rotina! Maldita mesmice de todo santo dia! Mas o pouco espaço na janela da área de serviço sempre me desencoraja. Deve ser uma sensação boa, de liberdade. Mais uma hora ainda. Estou queimando! E se madame pedir que fique até mais tarde, justo hoje? Talvez eu possa sair só um pouquinho mais cedo. Uns 10 min apenas. O suficiente para pegar a linha expressa. Não se esfregue desse jeito, deixe seu cheiro por que é ele que me deixa molhada. Tenho arrepios só de lembrar. Que horror! Será que existem mesmo coisas assim? Se o meu marido um dia tivesse proposto apenas um terço daquilo, voltaria para a casa da minha mãe.

A televisão vai ajudar a passar o tempo. Meu sonho sempre foi aprender a fazer pátina nos móveis da casa. Mas hoje não estou com cabeça de aprender. Pensando melhor, não poderia voltar para a casa da minha mãe. Teria que dar explicações, e teria que responder com honestidade. E minha mãe para desabafar poderia comentar com as amigas. Minha mãe tem muitas boas amigas, todas mui devotas e religiosas. Deixo o vinho escorrer nos pêlos da sua boceta e bebo embaixo, sentindo seu gosto. Que sujeira! Por que isso não sai da minha cabeça? Não pode ser que essas coisas aconteçam! Uma vez meu marido pediu para me beijar lá. Tive que ser sincera. Seca. Mulher tem que se impor! As imundícies que ele fizesse com as negas dele!

Estou um pouco zonza. A espera está me consumindo. Falta pouco agora. Um banho vai me livrar do cheiro gordura. A água morna só me deixa ainda mais excitada. Meu marido é um homem bom. Bom pai, homem honesto. Eu tenho uma profissão muito digna. Cuidar da vida íntima das pessoas. Zelar pela ordem de um lar. Tudo funcionando como as engrenagens de um relógio. Vou esfregar minha cara na sua racha melada até ficar sem fôlego. Fico com os joelhos bambos. Que nojo! Simplesmente não dá para acreditar. Quando que uma mulher casada, missa todo domingo, tem que ouvir uma coisa dessas? E da boca de uma mocinha! Eu me dou ao respeito, sou esposa, sou mãe.

Já deu minha hora. Que alívio! Achei que a tarde nunca ia terminar. Preciso escolher uma roupa bonita. O ônibus deve passar dentro de 20 minutos. Irene Aparecida de Fátima Ferreira da Leandro. O rosto em preto e branco que está me olhando do RG é o de uma menina. Uma menina inocente. Olhos limpos, alma pura. Não acho que eu tenha mudado muito de lá pra cá. É claro que agora sou mulher de família, já não sou mais ignorante dessas coisas. Já sei da vida, tive dois filhos. Mas ainda tenho valores, ainda tenho moral. Sentir seu grelo entre meus dentes e apertar devagarinho só pra te assustar. Estou tão excitada que vou ter que mudar de calcinha.

Esse ônibus que não vem nunca! O mundo está mesmo perdido, e já devia ter acabado há muito tempo. Veja só o rosto dessas pessoas. Todo mundo está me olhando. Todos com a cabeça cheia de idéias sujas. Todos! Adivinham para onde vou. Provavelmente está escrito em minha cara em letras de néon. Orgasmo. Gozar é o que dizem as putas na cama. Mas não me importo. Uns limitados sem imaginação. Esse é meu ponto.

Devo ir direto ao açougue. Tenho pouco tempo até meu marido chegar. Hoje ele vem para casa. É um grande companheiro. Tem duas amantes. Ali está! Mas que coisa maravilhosa é a vida moderna! Não preciso nem passar o constrangimento de descrever tamanhos e texturas ao açougueiro. Enfiar minha língua quente pela sua racha escancarada até ouvir você gritar. Exposta em uma bandeja de plástico e papel absorvente por baixo. Prontinha, me esperando. Só de imagina-las... Esta parece perfeita.

Finalmente em casa! Deitar no tapete. As pernas apoiadas na mesa. A água quente. Se eu fechar os olhos posso ouvir a voz de minha mãe, velha e santarrona. "Deus criou o homem e a mulher para que pudessem povoar a terra. E é só para isso que um homem e uma mulher se casam. Todo o resto é sujeira e pecado!" Meu Deus, meu Deus... Minha mãe nunca imaginaria. A carne quente raspando, roçando. Essa lixa que machuca. Fecho os olhos e num instante tenho a mulher que eu quiser entre minhas pernas! Me devassando, me abrindo. "A mulher é o esteio do lar. É santa e seu ventre sagrado. Se seu marido quiser fazer alguma sujeira com você, e ele vai tentar, é seu dever dizer não". Venha ver, mãe! Venha ver como essa língua entra dura, me rasga. Venha ver como goza essa sua puta!

*****

Já escureceu. Acho que cochilei. Que horas são? Tão tarde? Tenho que preparar o jantar. Arroz, salada e língua ensopada.

 
 

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