ARDENTES LEMBRANÇAS
Tatiana Alves
 

A tarde caía pesada naquele dia. A chuva, iminente, era anunciadas pelas grossas e opressivas nuvens que pareciam tornar o lugar ainda mais sombrio. Toda a aldeia reunira-se para presenciar mais um auto-de-fé, e aguardava enquanto a acusada tinha as mãos amarradas pelo inquisidor. Enquanto o fazia, ele olhava-a nos olhos, com uma expressão intraduzível, como se quisesse arrancar-lhe da alma o que ela jamais confessaria. Aproximou-se mais, e perguntou, em tom ameaçador:

- Admite então que é tentada pelo Mal? Responda, infiel!

- Admito que me guio por meus desejos, mas meus impulsos traduzem apenas aquilo em que acredito. A minha verdade.

- Sua verdade? Tem a presunção de possuir uma verdade particular?

- Não sei o que é a Verdade, absoluta, assim como a chama, se é que ela existe. Sendo assim, ajo segundo aquilo que é verdadeiro em meu juízo. Aquilo que julgo correto.

- E o que considera correto?

- Sei o que julgo incorreto. Destruir pessoas que pensam de forma diferente, por exemplo...

- Não destruímos ninguém. Purificamo-los. Purificatio, herege. Permitimos que suas almas pecaminosas e contaminadas pelo Mal sejam redimidas.

- Quanta generosidade! Dão a alguém a opção de não se purificar? Uma escolha?

- Quem está impregnado de pecado não tem a capacidade de discernir. Nós os encaminhamos ao Reino dos Céus.

- Faça seu trabalho, então.

- Confesse e demonstre arrependimento. Tentarei absolvê-la.

- Não me arrependo do que não fiz. Não farei seu jogo.

- Liberte sua alma, bruxa infame. - seu tom abrandava e contrastava com a dureza de suas palavras.

- A maior forma de liberdade consiste na escolha. Não serei livre se aceitar seus termos.

- Confesse, mulher ardilosa. Sua língua traz a marca do Mal.

- Minha língua expressa o que sinto e coloca seus argumentos em xeque. Mate-me, se assim desejar. Nada mais tenho a dizer.

- Assuma a culpa e será libertada. Eu lhe asseguro.

- Culpa? Não tenho culpa nenhuma. Esse é o ponto. Minha fé fala de perdão e de integridade. Se o seu Deus pensa como você, não quero conhecê-lo.

- Quanta blasfêmia! Confesse enquanto há tempo.

- Mate-me logo. Vocês mandam em meu corpo, mas não em minha vontade. Morrerei negando o que tentam me impor, como um remédio amargo posto à força, mas cuspido em seguida.

- Confesse... Por favor. - ele baixou o tom de voz. - Prometo ajudá-la. Não quero ter de torturá-la.

- Você já me tortura, com o tom desafiador e dogmático de sua doutrina, ignorando tudo o que destoe das suas próprias idéias. Se acredita naquilo que faz, mate-me. Segundo o que dizem, sou inimiga de sua fé.

Sem saída, o inquisidor ordenou que ela fosse morta. Dizendo as palavras de praxe, condenou mais uma à fogueira. E assim ela ardia, nas chamas, enquanto ele via queimar-se sua única chance de felicidade. Morrera olhando-o, sem gritar, ainda que seu olhar contivesse uma tácita condenação. Olhos em brasa, naquela pira, que pareciam traduzir todo o calor de seu íntimo, na promessa de ardentes beijos que jamais trocariam.

 
 

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