UMA NOITE ESPECIAL...
Adriana Vieira Bastos
 
 

Assim pensou Júlia, à caminho da porta, ao olhar a sala à meia-luz, rodeada de velas acesas e do perfume do incenso misturando-se ao do filé ao molho tártaro, cuidadosamente preparado para Armando, como da primeira vez, há trinta e quatro anos.

A campainha tocou novamente. Respirou fundo, arrumou o cabelo, olhou-se ao espelho, esboçou um olhar atento e abriu a porta. Emocionada, sorriu ao ver que ele, elegante como sempre, também tivera a preocupação de trazer o vinho branco, amigo inseparável de suas vidas.

Cumprimentou-o, pegou o vinho e caminhou em direção ao balde de gelo. Não sem antes perceber a aprovação visível no costumeiro e minucioso olhar analítico dele.

Nestas alturas, mais leve e descontraída, esperou-o, pacientemente, abrir a garrafa, encher suas taças para sentarem-se, dispostos a passar a limpo a vida que se propuseram a viver juntos.

A primeira taça levou-os à inocência do primeiro encontro. Não houve como conter o riso ao lembrar-se do vestido tubinho, a mão transpirando e o peito ofegante ao deparar-se com Armando em "alto estilo" - calça boca de sino azul, camisa cor de rosa e o cabelo franjinha, que tanto o fazia se sentir na "crista da onda". E no "dois pra lá, dois pra cá", quando perceberam não sabiam mais quem era um, quem era o outro...

A segunda taça, ao casamento. Aos ideais. Sonhos. Fantasias e às dificuldades que também passaram a fazer parte do cotidiano.

Cada taça, uma lembrança a mais. O nascimento dos gêmeos. As noites mal dormidas. O jeito atrapalhado de Armando, dando mamadeira para um, e, sonolento, pegando o outro para arrotar.

Depois veio Cíntia. Esta teria direito a uma taça dupla. Com apenas um quilo, e bem antes do esperado, chegou ao mundo mostrando sua personalidade forte. Quantas foram as idas e vindas do hospital, repletas de ansiedade, medo e impotência, ao lhes restarem apenas o papel de espectadores na sua luta diária pela sobrevivência.

E a infância, as idas aos hospitais? As peraltices dos gêmeos, O troca-troca dos gessos e das identidades nas salas de aula, e também dentro de casa.

E o primeiro namorado de Cíntia? O ciúme de Armando e dos gêmeos ao verem a princesinha prestes a ser "molestada" por um plebeu qualquer. Depois vieram as formaturas, os casamentos dos filhos e o ciúme disfarçado da filha ao sentir-se ameaçada de perder, para a netinha Camila, o posto de princesinha do clã.

Filhos, sempre filhos!...

Jantaram, beberam e chegaram a conclusão de que estava na hora de levantarem a última taça. Aquela que seria a celebração de tudo que representara a noite - a vida que tiveram juntos.

Visivelmente emocionados, com os olhos marejados, decidiram que a sentença do divórcio, assinada recentemente, não iria apagar tudo que haviam construído naqueles trinta e quatro anos.

Armando, trêmulo, aproximou-se e, sem querer, derramou-lhe a taça de vinho no seu vestido branco, comprado especialmente para aquela noite.

O susto foi o que precisou para acordar e ver que tudo não passara de um sonho.

Irada consigo mesmo, sentiu-se contrariada por ter de reconhecer que ainda levaria algumas encarnações para ter este comportamento, de mulher bem resolvida, que muitas pessoas falam, principalmente quando não são elas próprias as protagonistas de tais situações.

Mais descontente ainda, teve de aceitar não ter sido uma boa idéia o vinho de quinta categoria, que tomara na noite anterior com Marta, sua amiga das horas mais difíceis.

Com a cabeça martelando, e ainda cambaleando, levantou-se para preparar um chá de boldo e partir em busca de acertar as contas com a "fulaninha" de vinte anos que, sem piedade, ousara roubar-lhe Armando.

Mas, bastou dois passos para cair em pranto!

Desta vez, o pranto era só por ela mesma. Tantas foram as farras, as confusões, e o dia-a-dia extenuante, que não perceberam em que canto da vida deixaram esquecida a paixão que havia dado causa a tudo...

Sabia que a vida tinha dessas coisas!

Com o gosto de "guarda-chuva" na boca, chorou até as lágrimas se aquietarem e, triste, porém mais calma, tentou se conformar ao lembrar-se de Cássia Eller cantando: "...se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar, que tudo era pra sempre, sem saber que pra sempre sempre acaba."

 
 

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