BLECAUTE
Bárbara Helena
 

“...No dedo um falso brilhante, brincos igual ao colar
E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar...”

(Dois pra lá, dois pra cá- João Bosco e Aldir Blanc)

Ligou o aparelho e começou a cantarolar, junto com o CD:

“ Boneca cobiçada, das noites de sereno, seu corpo não tem dono seus lábios tem veneno”...

A garganta fazia um ligeiro tremido no final, enquanto braços acompanhavam a dança dos quadris, sensualmente, abraçando um par invisível.

Fiquei pensando onde ela arranjara estes CDs, de músicas antigas e bregas. Talvez alguém do meio preparasse para ela, dos LPs guardados nas caixas, uma das muitas empilhadas da mudança inacabada..

- Bonito, né? Já não se faz mais musica como antes...

- Verdade – menti.

Apanhei o maço de cigarro e olhei para ela de rabo de olho. Fazia tempo que a gente não se via. Desde quando eu era apenas uma menina de uniforme e ia escutar suas histórias improváveis.

- Mariinha não mora mais comigo... – ela pareceu ler meus pensamentos – Se amigou com um cobrador da linha Castelo/Leblon...

A elipse sublinhava o desprezo. Que se danasse. Sonhara tanto para aquela filha. Cobrador. Que ironia. Ia cobrar todas as suas culpas...

Olhei as moscas sobre o prato de bolo coberto com tampa de tela. Como elas, meus pensamentos vagavam.

- Cadê o Maurity?

Ela avaliou o esmalte descascado das unhas antes de responder:

- Aquele traste? Não faço a menor idéia.

Lembrei do Maurity chegando do trabalho, cansado, a pasta na mão. E ela explodindo de vida, tão nova, a filha da minha idade, adolescente. Maurity desligava o rádio e começava a briga.

“Boneca cobiçada...“ os quadris ondeavam outra vez.

- Lenira... posso te pedir uma coisa?

- Claro, como sempre.

Ela riu com a sugestão daquela cumplicidade. Um pouco da antiga beleza reapareceu no rosto iluminado.

- Eu sei. Tu sempre foi dez. Mas é outra coisa, agora é outra coisa... Não fala com a Mariinha que me encontrou aqui – apontou com o braço roliço a velha pensão. Ela pensa que estou morando na Barra.

- Barra? - não pude evitar o riso - Ela não te visita?

Nova consulta ao esmalte descascado.

- Não. Sou eu que não quero. Não dou endereço. Sei dela pelos amigos e ta bom demais.

A pergunta engasgada entre nós finalmente explodiu:

- E o Zé Luis?

Pela primeira vez, ela quebrou. Ficou calada enquanto a tarde agonizava. As sombras se abateram sobre nós até parecer que nunca mais ia ser de ontem de novo.

Acendeu o abajur, apanhou meu maço, tirou um cigarro, me ofereceu outro. Ficamos olhando a fumaça:

De muito longe ouvi sua voz:

- Não sei. Acho que casou, ficou bem de vida. Filho da puta.

Relembrei os bilhetes que eu levava, o medo, a culpa. Se Mariinha descobrisse... E o Maurity?... coitado, tão bom. Daquele tipo que serve pra ser pisado. Um dia cansou. Será?

No CD, a voz do passado ainda gemia: “boneca cobiçada das noites de sereno”...

Mas ela não dançava mais.

Mergulhada na penumbra cega, repetia a letra: “se queres que eu sofra... é grande o teu engano...”

Acabei o cigarro, esmaguei no cinzeiro e me despedi:

- Foi bom te ver, Jurema, de verdade. É gostoso reencontrar a turma do passado.

Ela tentou recuperar um pouco da antiga dignidade, da alegria esfuziante de antes:

- Também gostei, menina, você tá bonita, sempre foi... parece madame... Quer um pedaço de bolo?

- Eu adoraria – menti novamente - mas estou com pressa. Fica pra outra vez.

Ela fingiu que acreditou;

- Claro, uma outra vez... dá um beijo na minha filha, se você encontrar.

- Dou sim, claro.

- Mas não fala de mim... a luz do abajur colocava imensas olheiras negras sobre as maçãs.

- Pode deixar.

Sai com a garganta apertada. A luz dos bares e das vitrines do centro me ofuscaram um pouco. Tomei um táxi para o Leblon.

Abri a porta. A penumbra do apartamento me causou mal-estar. Acendi a luz.

Meu marido me pegou por trás e beijou minha nuca.

- Como ela está? Perguntou contra o meu ouvido.

- Acabada.

Ficou em silencio e me virei para ele.

- Tive pena, Zé Luis.

Ele tentou brincar: quem tem pena é galinha...

Mas eu só via a escuridão em que mergulhara, o abajur apagado dentro de mim. A eterna obscuridade que me cercava, não importa o quanto tentasse acender as luzes, todas as luzes...

 

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