NO LIMIAR DAS SOMBRAS
(parte oito)
Beto Muniz
 
 

Entre dormir e acordar a palavra 'descansar' voltou a se confundir com a palavra 'Deus'. A avó tinha ensinado o menino a soletrar a palavra Deus: D e E formando a sílaba DE, U e S formando US. DE-US. DEUS. Juberto ficou indeciso, parado na soleira dos sonhos, metade dos sentidos querendo descansar e a outra metade acompanhando a conversa dos pais. Decerto que seu poder de compreensão dos fatos estava adormecida.

Bertina estava bem acordada e compreendeu perfeitamente a gravidade dos fatos. Para não dizer novamente o nome de Deus em vão gemeu um pedido abismado de socorro, "Meu Pai Eterno!", e cruzou as duas mãos no peito como se ela tivesse levado o tiro do marido. Seus olhos se arregalaram na esperança de enxergar dentro da confissão do Jeromo algum detalhe perdido, alguma brincadeira incompreensível, um deboche do destino capaz de desdizer a tragédia que se formava dentro da mente. A filha! Irene enamorada do rapaz que o pai atirou. Onde já se viu perder o namorado na pontaria certeira do pai? Um céu vermelho coloriu a lógica materna. Quem acreditaria num acidente se o rapaz estava enrabichado pela filha do atirador? Quem, em nome de Deus, salvaria sua família da vingança dos Vieira? Zé Florêncio tinha gente ruim na família por parte de mãe. Gente que matava só para ver o tombo do desafeto.

Corria a boca miúda uma história de que o avô do Florêncio tinha morrido numa tocaia e dois dos filhos vingaram a morte do pai até na terceira geração do assassino. Balbina cismava que o Florêncio acompanhou os tios na vingança, mas Bertina achava que na ocasião da matança o Zé Florêncio era muito novo para ser exposto assim, malemá tinha tamanho para segurar um revólver! Apesar de que agora o rapaz sempre tinha uma arma na cinta. Dizia que era para defesa. Defesa de quê? Acaso tinha medo de alguém vir cobrar o sangue dos mortos? Jeromo ainda nem sabia dessa história do Florêncio com Irene. Não devia tocar nesse assunto agora. Só serviria para deixar o marido mais aperreado, mais agoniado.

- Foi acidente Bertina. Pensei que era bicho.

Não era lamento ou justificativa. Jeromo lançou a informação como quem cospe uma semente de melancia, colocando para fora a inquietação entalada na garganta.

- Bicho? E por estas bandas tem bicho do tamanho dum homem Jeromo?

- Ele estava agachado! Acho que o coitado estava obrando.

- E você atirou num homem obrando Jeromo?

- Como eu ia saber Bertina? Pensei que era cateto fuçando no mato! Meia légua antes eu tinha atirado numa perdiz e estava só com chumbo grosso na cartucheira. Não tinha nem jeito de espantar para depois pegar o bicho na corrida. Quando ouvi barulho atrás da touceira, uns metros dentro da mata, parecia que fosse cateto. Mirei e atirei! Estava escurecendo, não vi direito, mas depois que atirei parecia o Zé Florêncio se levantando, e gritando que eu tinha matado ele. Depois caiu novamente. Eu levei o maior susto, quis acudir, mas fiquei com medo de ele estar só machucado. Você sabe que o Florêncio anda armado! E se fosse o caso, ele poderia me atirar para vingar o tiro ali mesmo. Sabe que os Vieira são gente de sangue ruim, mesmo ferido ele podia estar me armando um bote. Voltei pra trilha sem ter certeza que ele morreu. O Juberto perguntou o que foi aquilo e eu disse que tinha atirado num macaco pra não impressionar o menino.
A mãe ainda não sabe o que dizer. Lhe faltam palavras e ela não quer dizer repetidas vezes o nome de Deus. Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus, mais que uma lamúria desnecessária, seria repetir o Santo Nome em vão. Pecados a parte, neste momento é tudo que sua língua quer lançar boca afora... Suspira resignada com a desculpa do marido, mas suas preocupações são outras, bem mais complexas que desfazer a confusão na mente do filho. Comenta enquanto pensa, apenas para não deixar o silêncio costumeiro interromper a longa conversa:

- Deixou ele mais impressionado homem! Onde já se viu macaco falando o nome do pai? Coitado. O menino tem razão de estar tão perturbado.

- E o que você queira que eu dissesse mulher?

- Ai homem de Deus!

Não era a melhor coisa a se dizer - ela se repreende mentalmente. "Não fale mais o nome de Deus em vão". Nem ela nem o marido têm por costume alongar tanto uma prosa. Talvez por isso falte jeito, falte vocabulário, faltem palavras quando se tem tanto assunto a dizer. Mas Bertina não está pensando nessas coisas, ela simplesmente desligou os sentidos externos e se perdeu em reflexões profundas, num emaranhado de nós que são conseqüências dessa história que acaba de ouvir. Pensa na filha, no namoro escondido, furtivo. Solta novo suspiro de desalento e retorna ao mundo, ao pequeno cômodo iluminado parcamente, o querosene está acabando e da lamparina sobe um cheiro de pano queimado. É preciso colocar mais combustível e puxar o pavio. Continua sentada diante do marido. Ambos estão imóveis, olham para a chama que dança como um afogado se extinguindo dentro das ondas. O querosene está acabando, porém, é mais por falta de palavras que expressem seus sentimentos e conclusões a respeito do assunto que ela se levanta. Decidiu passar um café. Quem sabe um café quente e amargo clareie as idéias e faça surgir todas palavras que precisam ser faladas? Enquanto esquenta água volta a pensar no Florêncio. Muito novo para morrer desse jeito. Quando volta com duas canecas esmaltadas meiadas de café, Jeromo já puxou o pavio. Deve ter completado o querosene também. Ela não pensa nessas tarefas automáticas quando retoma a prosa:

- Você vai voltar lá então?

- Volto com o Chico.

- E se o Zé Florêncio estiver morto mesmo?

- A gente deixa o corpo dele lá. Deixa alguém descobrir. Pode ser que pensem em tocaia. Todo mundo sabe das desavenças do Florêncio com os filhos do Valcir Morais por conta dessa história de filhote da Ligth.

- Isso não se faz homem.

- E você quer que eu diga pra família do Florêncio que atirei nele? Ainda se eu dizer que foi por engano, quem vai acreditar?

- Não quero nada, mas quem mais pode ter passado naquele caminho hoje? Você foi à fazenda do Levi Américo receber pelo trabalho, todo mundo viu você e o Juberto. Muita gente sabe que vocês passaram duas vezes pela trilha hoje. Mesmo que pensem em tocaia vão vir em casa perguntar se você viu alguém passando por lá.

Jeromo não responde, aproxima a caneca dos lábios mas não bebe. Fica em suspenso, pensando em qualquer coisa, menos em beber seu café. Ele solta a respiração sobre o café fumegante e um arremedo de fumaça sobre pelas suas narinas. O homem afasta a caneca da boca e a deposita sobre a mesa. Seu rosto se aproxima da lamparina, a face fica iluminada, os olhos clareiam, são de uma tonalidade próxima da cor do mel. Bertina deixa o marido pensar. Suas conversas mais importantes são assim, entremeadas de longos silêncios. Na imensidão de ponderações mudas ela se pega pensando que gosta da cor dos olhos do marido. Bertina lamenta que nenhum dos filhos tenha puxado a ele. Todos os filhos nasceram com os olhos de jabuticaba dela. Negros. Redondos e escuros. Não são feios, nem de longe! Mas bem que os olhos de mel de Jeromo podiam ter se repetido num dos filhos. Esse pensamento é uma cisma antiga, nascia um filho e Bertina ficava atenta, esperando em segredo, torcendo para ver uns olhinhos de mel surgindo entre as pálpebras do recém nascido. Nunca aconteceu. Os olhinhos de jabuticaba foram se repetindo um por um em todos seus filhos. Engraçado se pegar pensando nisso justo agora. Nem é hora de pensar na cor dos olhos dos filhos, é hora de trazer o marido à razão. Ela bebe o último gole amargo e lança mais um argumento:

- E se alguém ouve o Juberto contando essa história do macaco que você matou? Não tem jeito de esconder uma coisa dessas Jeromo!

- O Chico também pensa que não dá pra esconder. E ele nem sabe da história do macaco.

- Num tô dizendo? Jeromo, você está com a cabeça quente e por isso não está pensando direito.

Lá de longe, bem distante, a conversa dos pais vai chegando e invadindo mansamente os ouvidos sonados de Juberto. Ele ainda está encolhido de dor, mas já sente a confusão e o pavor se diluindo nos pensamentos. Tudo faz sentido agora que o morto é o Zé Florêncio. A consciência vai fugindo para a terra dos sonhos e finalmente o menino entende o grito do macaco, que não era macaco. Não é que agora fazia sentido o pai correr, esquecer o filho na trilha com o pé estropiado? Era desespero por ter atirado no Zé Florêncio, que nem homem formado era ainda, apenas um rapaz. A barba começando a brotar na cara e ele já se engraçando para Irene, a irmã moça. Ela não ia gostar de saber que perdera o pretendente, coisa mais rara naquele canto do mundo, mas isso era assunto para irmã saber no dia seguinte porque agora ele estava muito cansado e só queria dormir.

O pé latejante foi parando de doer, a voz do pai foi sumindo, os olhos do menino pesaram e ele sorriu aliviado: "Onde que eu estava com a cabeça? Macaco não fala". Virou o rosto para o lado da parede, sentiu o cheiro de saibro novo calafetando o vão entre os paus entrelaçados e sentiu vontade de beber um copo de leite com açúcar. Bastante açúcar! Tanto que mesmo mexendo bem ainda restariam uns grãozinhos escorrendo pela parede do copo. Juberto pensa no restinho de açúcar formando uma trilha com as últimas gotas de leite e esquece o dia atribulado, a dor no pé, o falso macaco. Seu último pensamento estaciona no copo de leite. Doce. Exageradamente doce.

Ao amanhecer seus sonhos haviam abandonado o limiar das sombras, dentro do sono reinava uma sensação de cristais minúsculos derretendo docemente sobre a língua.

 

(NO LIMIAR DAS SOMBRAS é uma brincadeira solicitada no natal de 2004 por Gilberto Marques Muniz, meu pai, após narrar fatos de sua infância ao lado do meu avô, Jeronymo. Infelizmente meu pai faleceu dia 09 de maio de 2005 sem ler a história que me encomendou e que deixo sem final)

 
 

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