NOCTURNO
Leila de Barros
 
 

Na semiclaridade deste quarto, posso finalmente acalmar meus sentidos e tatear meu corpo para ver se me reconheço.

Um longo espreguiçar dos sentidos, um bocejar deslavado, sem medo, sem ética.

Tudo se aquieta e a madrugada deixa-se instalar nos recantos semi-iluminados desse meu cosmos. Ouço música e alongo as pernas, encolho-as novamente em posição fetal. Abraço a noite e deixo-me abduzir pelos pensamentos noturnos.

O colar de pérolas sobre a cômoda, os sapatos de salto alto espalhados e desconjuntados no chão, sem uma composição harmônica.

Quando e onde deixei minha compostura se descarrilar?

Quando é que perdi o trem da elegância?

Acho que foi excesso de verde. Verde na alimentação, verde nos vasos de plantas do apartamento, verde no tom das paredes, meu batom verde!

Deixei digitais verdes de meus lábios por toda a parte, nos copos de cristal e nos guardanapos bordados com fio de ouro.

Vendi beijos verdes e manchei gravatas e colarinhos engomados. Questionei juízes e saí de tribunais rebolando com vestidos justos de seda e sempre calçando salto alto e bem fino. Somente os saltos eram finos.

Vou acalmando os feixes de nervos e o aço do qual são compostos, vai tornando-se maleável e flexível como em uma performance de malabaristas.

Tenho sido uma artista de circo, contorcionista por trás de um muro de jardim. Desse modo, vou quebrando os tijolos de barro e substituindo-os por vidro. Só assim posso espionar as flores do bem e os narcisos.

Vou fazendo planos que rabisco com giz colorido nas paredes, obviamente laváveis.

Um espelho d’água na sala, uma varanda com escadaria para a lua e o mar espumante e frio pela manhã tocando meus pés.

Na semi-escuridão da madrugada, ouço os sons noctâmbulos e finalmente vou conseguindo me reencontrar. O apartamento cresce em luz e o clarão selênico espalha-se sobre minha cama, cingindo minhas placas tectônicas e unindo-as como um infinito continente das muitas identidades que tenho sido.

 
 

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