O PORÃO
Luís Augusto Marcelino
 

Eu chegava do trabalho por volta das onze da noite e estranhava o fato de a porta de madeira do meu vizinho sempre estar entreaberta. Havia uma pequena claridade dentro daquele quarto, uma meia-luz fúnebre e incômoda, que eu jamais imaginei o que escondesse.

Minha mãe foi quem disse que um sujeito de uns quarenta e cinco anos tinha mudado pra lá naquele sábado de 2003 - há quase dois anos, portanto.

Eu vinha cansada do trabalho, uma jornada de seis horas que pareciam quinze, numa clínica próxima ao Parque do Ibirapuera. Aturava as madames, as secretárias executivas, as cantadas dos empresários inescrupulosos e nojentos que freqüentavam os consultórios suntuosos dos doutores Akem, Vasconcelos, Araujo e Gianelli. Este último foi quem me entrevistou, quando me tornei funcionária da clínica. Não tirava os olhos esbugalhados do meu decote. E notei, quando estava saindo da sala, porque havia um imenso espelho no recinto, que ele mexeu no pênis quando viu minha bunda. Salário pouco animador para uma recém-formada em Administração de Empresas, mas precisava trabalhar para sustentar a mim, minha filha e minha mãe.

- O Afonso morreu, Ligia!... - comunicou minha mãe.

- Quem é Afonso, mãe? - respondi.

- O homem que mora no porão.

- Ah, sim...

Obviamente que aquela notícia não me tirara a concentração. Afinal, tinha muito o quê fazer ontem. Eu não conhecia o Afonso, nunca o tinha visto, não sabia como ele era, nem o que fazia, nem o que gostava de comer. Só sabia que ouvia música clássica, o que eu estranhava plenamente. A única lembrança que vinha à cabeça era sua porta entreaberta. Devia ser um louco - foi o que sempre imaginei.

Cheguei mais cedo em casa porque, na verdade, eu já devia estar em férias, mas atendi ao apelo de um dos médicos para trabalhar mais um dia. O corpo do Afonso já tinha sido levado pelo camburão do IML. Mamãe me perguntou se eu iria ao enterro na manhã seguinte. Respondi que não, que mal o conhecia. Melhor dizendo: de fato eu nunca tinha visto a cara do sujeito. Eram quatro horas da tarde.

Levantei antes de o Jornal Nacional começar. Minha mãe tinha levado Carol - minha filha - à igreja, e as duas só voltariam lá pelas dez da noite. Fazia muito calor, e estava insuportável ficar em casa. Primeiro peguei um suco de melancia na geladeira. Não desses sucos prontos, em caixinha. Era suco natural mesmo, resto de uma melancia adormecida que a minha mãe tinha comprado na feira de quarta. Dirigi-me até a varanda e avistei o porão do Afonso. Curiosamente a luz se mantinha acesa, embora fraca, quase um fio de luz.

Embora achasse uma atitude terrível, resolvi descer e dar uma olhada no quarto do defunto. Quem sabe não houvesse lá um tesouro escondido, um cheque em branco, qualquer coisa que pudesse ajudar-me a sair da pindaíba que eu estava passando. Sorri pra mim mesma. O que poderia ter de valor naquele pequeno quarto fétido e úmido?

Não havia televisão no quarto. Nem geladeira. Apenas uma mesa azul, duas cadeiras, uma cama velha, um fogão de duas bocas, um bujão de gás e uma estante. As coisas estavam razoavelmente organizadas. Especialmente na estante. Algumas centenas de livros organizados por ordem alfabética do nome do autor. Tinha também um rádio, não um toca CDs, um daqueles rádios antigos com controles mecânicos. Quis ver os livros que tinha na estante, sim foi essa a minha primeira vontade. Apostava que se tratavam de romances eróticos de quinta categoria, era nisso que eu acreditava. Então me dirigi à estante, mas tropecei num tapete colorido. Isso fez com que eu voltasse meu rosto para a direção da parede próxima à cama do falecido.

- Cacete!...

Tinha um painel de cortiça na parede. E algumas dezenas de fotos minhas penduradas neles. Eu indo trabalhar. Chegando. Trepando com o Claudio, meu último namorado. Dando comida para a minha cachorra. Brincando de esconde-esconde com Carol. Todas as fotos tinham legenda: "Lígia, linda, em 13/12/2003." Meu nome, minha expressão, e a data. Tudo metodicamente registrado.

Tive vontade de vomitar. Um mal estar tomou conta de mim e odiei o cara que eu jamais tinha conhecido. Especialmente por causa da foto em que eu chupava o Claudio. O desgraçado conseguiu captar minha volúpia, e temi que Carol ou minha mãe tivessem entrado naquele maldito porão.

Percorri cada uma das fotos. A primeira, de um ano atrás, quando eu estava olhando para o nada numa tarde de domingo. A última, do dia anterior, de quando eu falava ao celular com um Rodrigo, um cara que eu tinha conhecido no ponto de ônibus havia duas semanas. Naquele telefonema eu tinha topado sair com Rodrigo no próximo sábado. Lembro que falei isso meio eufórica, pra todo mundo escutar, assim que desliguei o celular. Acho que Afonso ouviu.

 
 

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