À CUSTA DO NEZINHO DO JEGUE
Raymundo Silveira
 
 

Quando percorri quase todo o território português (faltou o Algarve), em Agosto / Setembro de 1984, um dos eventos mais importantes do país era a exibição da novela "O Bem Amado", de Dias Gomes. Tinha como principal personagem o prefeito de Sucupira, Odorico Paraguassu, interpretado por Paulo Gracindo. Um dos atores coadjuvantes era o meu amigo particular, conterrâneo, filho da minha madrinha de batismo que, como parteira que era, foi a primeira pessoa que tocou em mim. Ele, Wilson Aguiar, o Nezinho do Jegue, o Cheiroso. Ela, Aninha Aguiar. Ambos de muito saudosa memória.

A audiência e o sucesso do programa eram tamanhos, a ponto de cessarem praticamente todas as atividades na hora de ir ao ar. Executivos de empresas multinacionais adiavam ou cancelavam importantes compromissos. Escolas sustavam as aulas. Repartições públicas, casas comerciais e instituições bancárias cerravam suas portas. Missas, casamentos e batizados eram procrastinados. Em suma, tudo passava para segundo plano. Contam que um determinado colega de profissão pediu, numa incerta noite, a uma parturiente para que desse "um jeitinho" de a criança não nascer naquele horário. Que cruzasse as pernas, evitasse as contrações, não fizesse força, não se espremesse, prendesse o fôlego... Enfim, qualquer coisa, "mas não vá me parir na hora da novela, pelo amor de Deus". Tratava-se, portanto, de um fenômeno semelhante ao de um jogo do Brasil na Copa do Mundo.

Uma noite, quando estive em Évora, quase bebi nas calças de tanta sede a espera de que abrissem o bar do hotel a fim de entornar o meu indispensável litro e meio de "Casal Garcia", como fazia religiosamente (e até mesmo sem religião alguma), todos os dias naquele mesmo horário. Não entrei em crise de abstinência, por muito pouco. De volta a Lisboa travei relações com um portuga. E o nosso papo praticamente só girava em torno dos episódios do pastelão global. Então, fui cair na besteira de dizer que eu nascera na mesma cidade (se ele soubesse o tamanho da "cidade" pensaria que eu estava delirando: cidade em Portugal é do tamanho de Lisboa pra cima), do Nezinho do Jegue. Seus olhos se arregalaram. Quando complementei que também éramos muito amigos, a mãe dele foi quem me pegou quando nasci e que era afilhado dela de batismo, o Manuel (ou Joaquim, já não me recordo bem), ficou indócil.

"Ei, Pessoal, o gajo aqui do meu lado é..." Deu todo o serviço. Foi um Deus nos acuda. O autocarro parou e todos os passageiros, além do motorista, queriam conferir se era mesmo verdade. "Amigo do Nezinho do Jegue? Não é possível". "Como se chamam os pais dele?" "Antônio e Aninha", até aí consegui responder. Depois foi simplesmente impraticável. Todos falavam ao mesmo tempo: "Onde é mesmo que ele mora?" "Tem quantos filhos?" "Qual o nome do cachorro dele?" "Bebe mesmo aqueles pileques malucos?" Àquela altura o Joaquim (ou Manuel) convidou-me... Convidou-me não, obrigou-me a ir jantar com ele. Tratava-se de destacado empresário do setor da construção civil. Mas isto pouco importa. A verdade foi que o Manuel (ou Joaquim) me arrastou para jantar consigo naquela noite, em Lisboa.

Jantar sofisticado: à luz de velas. À meia-luz, portanto. Foi num restaurante da Baixa, o famoso "João do Grão", próximo à praça dos Restauradores. Ao comparecer no local, lá pelas dez da noite, havia convidados. Gente de todas as idades, profissões e de ambos os sexos. Ávidos de conhecerem o afilhado da mãe do Nezinho do Jegue. O Joaquim (ou Manuel, não lembro ao certo), pediu que eu mesmo me apresentasse aos seus amigos. Fi-lo em versos:

"Sou da terra do Nezinho / E ando aqui por Portugal. / Vim beber vinho do Porto,/ Também comer bacalhau. / Quando sair de Lisboa. / Pretendo ir ao Funchal./ Gosto muito do Soares, / Mas prefiro "seu" Cunhal./ Não sou homem muito bom, / Porém tampouco sou mau!"

Não me deixaram pagar um único Escudo pela despesa. Que não foi pequena.

 
 

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