ANTÔNIO
Edison Veiga Junior
 
 

Antônio era o antônimo de íntimo, não por ser anônimo, mas por ser entrega. No óbvio que evitava, avistava Deus e suas antífonas; no êxito que aviltava, voava sobre as mentes antiquadas. Antônio tinha acento circunflexo, pra combinar com seu ar cincunspecto.

Mesmo extrátimo, avesso do in, dentro do fora e assimétrico na identidade, tinha lá suas fraquezas. Revelava-as antes, ao espelho, no banheiro ou mesmo nas viagens no inverso de seus sonhos, através. Antônio, seu nome.

Na biblioteca, por exemplo: intrépido costumava vasculhar os descartes alheios, numa tara irrefreável por consumir a leitura recém-completada. Sua diária lida: locupletou-se, a vida toda, no já lido. Semblante santo, sentava-se na cadeira mais próxima daquelas mesinhas onde há o recado estampado: "Por favor, depois do uso, deposite aqui o livro utilizado". E, num gesto certeiro e rápido, antes que a tiazinha gorda da biblioteca passasse recolhendo os livros "pra estatística", apanhava alguns deles e levava para o seu alcance, um gosto de deleite no rosto, um sorriso interior, um sarcasmo bem Antônio.

Daí era só revirar aquelas obras misteriosas: Leminski falando de Cristo, quem será que pegou pra ler isto? Olha só, um livro de Drummond cheio de anotações a lápis... Guimarães Rosa? Stendhal? Gabo? Nossa, eu sempre quis pegar essa história da coca-cola, mas nunca me lembrava de procurar!

Outra fraqueza íntima de Antônio era caçoar, interiormente, do exterior. Não do exterior estrangeiro, nem do exterior próximo outro, mas sim do exterior externo a si mesmo. Quando se via sozinho, no quarto ou na rua, coçava sua pele e pelamordedeus que lhe faltava blasfemava contra sua própria antonice. E começava a arrancar pedaços antônios, num exercício de autodestruição no mínimo interessante. Sem dúvida, não havia nele qualquer resquício de estima própria.

Antônio morava na Casa do Ó: as maluquices meio que loucanizam os olhares. Licores. Laços. Vaga-lumes luciluzindo em todas as esquinas. Um retrato pra alguém nunca mais olhar.

Uma vez deixou cair seu canhenho. Assim:

1) Suéter: Molhado dependurado no varal. Aquele da matemática. Aquele do tempo em que eu era ilusões e me perdia na trigonometria analítica. Um prendedor, uma bolha de sabão. Dentro da bolha um menino iridescente, sorrindo só no canto da boca, cigarro entre os dedos. Depois ele pára de sorrir. Depois ele sussurra o mais alto que pode, no limite onde o sussurro quase se deita e deixa de ser sussurro pra se tornar gritinho histérico:

- Ahahaha! Eu vou queimar a bolha de sabão com a brasa do cigarro! Ahahaha! Eu vou me libertar daqui! Eu vou me vingar de vocês! Protejam suas filhas, seus viadinhos! Protejam-nas porque eu as projeto!

Mas o canhenho continuou caído. Assado:

2) Aforismo: errou quem disse que as pessoas são engraçadas. As pessoas são é desgraçadas.

E quem disse que o canhenho se levantava? Assunto:

3) Incrédito: custou, mas hoje descobri que a esperança morre de soluço e o sol não nasce de desgosto.
Custou, mas eu paguei.

Chamaram até os bombeiros, mas o canhenho, ah, o canhenho parecia grudado ao chão. Assento:

4) Egotrip: passo as tardes desobstruindo os mecanismos criados para auto-satisfação. Depois volto pra casa contando as estrelas que escorregaram e viraram paralelepípedos do caminho. Aí percebo: os caminhos são todos intransigentes mesmo!

O canhenho lá... Absinto:

5) Loucubrações: como estão as coisas quando o mar está estranho? As uvas, a chuva, o momento e a água... A cura nunca há mais, senão a dor pela saudade do que nunca foi direito. Saudade? Não... Não há cura que destrua o saudosismo. O resto é história. Por enquanto há só a morte das lembranças amargas.
Morrem sim. Junto com a esperança: sensual e etérea vicissitude dos que se afogam nela. Hoje o dia está assim. Esquálido. Não há salvação por trás do texto.

Pensando bem: não há salvação na frente também. Não há salvação no nexo, tampouco no contexto. Que é que somos?

E a torcida toda gritando: ca-nhêee-nho, ca-nhêee-nho, ca-nhêee-nho! Absorto:

6) Sobre cronópios e famas: um manual para viver à toa. Dois manuéis para sorrir atéia. Três menudos para cair no atchim!

Saem os bombeiros, entra a maca. Canhenho permanece em estado autômato. Mas desligado. Abduzido:

7) Definição: quando descobri que os seres humanos não vinham com manual de instruções, deitei a cabeça no travesseiro e chorei por mais de duas horas sem parar. Depois voltei a mim e passei a encarar o mundo do jeito que as coisas se me apresentam mesmo. Quando descobri a inexorabilidade da Lei da Gravidade, primeiro fiquei com raiva, depois fiquei com uma inveja desgraçada desses vereadores celestiais que podem tudo com suas leis que jamais serão revogadas nem sob Medida Provisória. Quando desperto de meus sonhos, sempre acho que a vida vale menos a pena. Mas, mesmo assim, continuamos com nossas dúvidas e inquietações. Que são o que nos movem, não é mesmo?

O canhenho murmura pedindo água, mas ninguém mais se lembrava a fórmula dos dois hidrogênios para cada oxigênio. Abraço:

8) Mente oca: no silêncio sai o cio nervoso das palavras que hoje não quero escrever. Xô! Assim a sina persegue e a vida segue cega na invirtude efêmera dos não-seres.

Tentam pregar um esparadrapo na boca do canhenho, mas ele não usa mais cadarços. Ábaco:

9) Ao espelho: e diga-me, o que fomos ontem se nada estávamos por dentro de agora? Diga-me...

Idéiam pegar o canhenho e meter-lhe num balde de água fria. Mas ele foge. Aberto:

10) Ensaio para uma oração: maremoto ou destruição?

Olho para o horizonte e não percebo o que está nem onde. Liga não. Isto de não ter ninguém no caminho só pode ser uma rede balouçando vazia. O resto se inventa, se vinga, se viceja. Amém.

***

Nunca mais ninguém acreditou nessa história de que Antônio era o antônimo de íntimo. Vai ver ele, tornando-se público, deixou de ser pudico.

- Tão abismada...

No meu canto, embebido de solilóquios e manifestações de apreço por mim mesmo, rezo todo-dia pra que ninguém me julgue ser seu alter. Antônio...

 
 

email do autor