CAFÉ DE DUAS MÃOS
Lia Falcão (Lilly)
 
 

Naqueles dias rareava entendimento entre os atos e os pensamentos. Sempre achou que variava. Não tinha dúvidas. Os outros é que não percebiam ou disfarçavam muito bem. A falta de juízo, às vezes, dá nisso. Acordar no meio das madrugadas procurando pelo tino. Levantou-se à cata de um pouco de sanidade.

As coisas andavam por demais embaralhadas. Quando em vez, dormia, mas era pouco. Não tinha mais saúde para ir adiante. Bebia e drogava-se nessas fugas: perdia-se demais de si. Tentou várias fontes terapêuticas mas sabotava os médicos porque, afinal, achava que dormir era uma baita perda de tempo. Não havia quem lhe sedasse e, naquele dia específico, a insônia estava superlativa. Desassossego de sobra.

Andou pela casa imunda. Notou as plantas morrendo de secas, a camada de poeira dos móveis antes tão limpos que refletiam. Olhou os quadros mortificados nas paredes pedindo socorro também. Entendeu que as coisas, às vezes, se personalizam e pedem alguns cuidados. Ao contrário da gente que às vezes se coisifica e passa a não reclamar providência alguma.

Com olhos desidratados pelo choro e pelas noites indormidas, os cabelos desgrenhados pelo descaso, as roupas sujas e repetidas, mais o desprazer de sair de casa para espiar a vida, considerou que talvez - só talvez - estivesse à beira de uma certa coisificação. Importante isso de gente virar coisa.

Ferveu uma pouca de água e esperou o barulho das bolhas anunciarem a prontidão da cafeteira. Passou café para dois. Não tomaria café sem companhia. Pensou em acordar sua grande amiga. Não havia de tomar café naquela sozinhez - há essa absurda solidão, essa irremediável sensação de se estar só ao se tomar um cafézinho no meio da noite. E havia o costume antigo do café-de-duas-mãos em sua família. Uma mão para o café e a outra para ajudar, se puder. Era o ditado. Pensando nisso, acordou-a, de mansinho, e ofereceu-lhe uma xícara de café novo e fumegante. Ela, que andava distante e quase vã, ultimamente, aceitou a oferenda com um sorriso largo e cúmplice. Razão melhor para uma prosa?

Ligaram o rádio no menor volume para não espantar o silêncio. A voz distante de um locutor anunciava um jornal local entremeando notícias sobre as últimas novidades farmacêuticas para insônia. Ironia pura. Há tempos andava com fastio da vida e nem essas conversas queria mais. Miraram-se. Sabia que já tentei me matar várias vezes e me arrependi? É mesmo? É. Não via muita utilidade em viver mesmo e, antes de te conhecer. Achava isso uma imposição grande demais, entendeu? Tinha muito medo de me perder prá sempre, entende? Claro. Depois que te conheci, vi que a vida podia ser levada um pouco menos a sério e isso me confortou...Que bom! Eu também já pensei em desistir de tudo, um dia. Acho que todo mundo pensa. Normal. Mas acho que se a gente faz isso é o mesmo que cair na "perdição", entendeu? Sorrisos...

Os pássaros já começavam a arrebolar suas cantorias e a dupla, entoada com eles, tomava cafezinhos noite adentro, jogando conversa fora. Ficaram ali, tecendo nostalgias e puxando angústias, compartilhando, desembrulhando pecadilhos e esmiuçando intimidades, ao som de alguns choros e muitas risadas gostosas.

Tinham uma amizade verdadeira, daquelas em que sobram sinceridades e silêncios generosos; das que não se planejam: acontecem, simplesmente. E assim, ficaram falando de tudo e do nada. Nada é o lugar mais perto de quem está ausente de si mesmo. A-han. Você não acha que só o tempo é pouco para curar certos desatinos? Acho. Tem coisas que é preciso muita ternura além do tempo, não é? Claro. Você já está com sono? Quer mais um cafezinho? Quero.

E assim o que era quase impossível chegou: um sono doce e manso. Arrumaram-se e deitaram-se lado a lado na rede crua. Tomaram café e coragem àquele dia. Face a face - ora se reconhecendo, ora se estranhando, ora se cobrando, ora se auto-perdoando – puseram a vida em dia. Viver tornara-se uma alternativa menos difícil e injusta. Cumplicidade. Um gravitar benfazejo entre o ser e o vácuo distante onde se escondem todas as perdas superadas.

Longe de ser ideal, a vida, ali, adoçara-se o bastante. É preciso aprender a brindar com o que se tem. E ternura recíproca é sempre motivo para brindes vários. Sentiu-se em grande companhia. Agradeceu ao dono de tudo pela insônia bem-vinda naquela noite e então compreendeu que na vida, às vezes, o amargor pode ser adocicado e a escuridão pode ser boa, se vista do ângulo correto: se vista como um arrebol.

Dormiu serenamente. E, enquanto dormia, a sua alma lavada - a grande companheira dessas e de tantas outras intimidades – com uma das mãos, dava-lhe delicados cafunés, e, com a outra, tomava um último cafezinho.

 
 

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