A FORÇA DE UMA INTIMIDADE
SEM INTIMIDADE ALGUMA
Mairy Sarmanho
 
 

Não sou íntima. Não sou íntima de ninguém. Nem de mim mesma.

Abro os olhos e vejo a luz vertendo da lâmpada e se esparramando pelo tapete vermelho até se desfazer em vagalumes que atingem meus olhos, cegando-me. Encolho-me num canto e fecho a cortina da sala de estar enquanto meu vizinho, tenta em vão, me espiar. Estou nua e não quero ser vista nem revista na cantina onde me resguardei esse tempo inteiro esperando que a espera termine e você corra ao meu encontro me abrace me ajude me salve. Isso não acontece. Permaneço encolhida e meu vizinho permanece na mesma posição, tentando me alcançar com seu olhar intruso sem perceber a folha verde que escorrega da árvore, sobrevoa o ninho dos pássaros, atinge em cheio uma borboleta jogando-a no chão, transpassa o vazio e se divide em inúmeros fragmentos sobre minha boca cheia de farinha e sedenta de paixão.

Não sou sua. Nunca fui. O papel que assinei não garante nossa intimidade.

Assombra-me o vento que se manifesta como uma gota d´água sobre a geladeira enferrujando nossos alicerces mal feitos na imperfeição de tudo. Sinto-me invadida quando o telefone toca por isso não atendo mais. Sinto-me prisioneira do contrato de trabalho por isso não trabalho mais. Sinto-me vazia na varanda cheia de gente devorando salgadinhos como traças no armário enquanto a noite vem chegando e trazendo consigo o silêncio que convém à morte em vida sem a vida que me levou.

Não existe o dar. Não existe o receber. Tudo isso é uma tolice.

Todos os dias penso em partir mas me permito ficar. E ficando vou fazendo um blusão novo com os remendos do velho enquanto procuro um sentido para o acaso e o descaso comigo mesma e com o mundo. Meu cão chora lá fora e eu não tenho coragem, sequer, de abrir a porta porque temo o frio que virá junto enquanto me encolho na cama enrolada no cobertor de crochê que gostaria ter sido presente de minha mãe ou vó. Mas não foi. Fui eu quem fez tudo sozinha.

Na incredulidade da vida presente fico mergulhada no passado esperando que a cortina não se abra com a força do vento e você não possa atravessar a sala e ver minha intimidade escancarada sobre a cama com lençóis de algodão e eu nua, esperando a tourada que virá na Espanha onde irei correr a corrida humana em busca de um pouco de sensibilidade antes da matança dos touros. Você vai vir. Eu sei. Mas iremos ficar juntos sem intimidade?

Acaso somos íntimos? Você sabe o que se passa na minha cabeça nessas horas? Eu sei?

 
 

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