HOMEM QUE VÊ A VIDA ©
Cármen Rocha
 
 

...ele precisou muito amor para se resolver...

Bom humor está no ar, nesta bela manhã - puro cheiro de mato, dos arvoredos do Morumbi. Assobio. São sete e meia da manhã. Tiro o carro da garagem e em velocidade moderada faço o curso rotineiro para o escritório. Tudo em sossego. Alegria. Mas estranhamente aos poucos, meu coração acelera suas batidas conforme ritmos insolentes de garotos na idade das danceterias. Sinto um tênue déjà vue. E consigo respirar com certa dificuldade. Coisas diferentes estavam me acontecendo? Continuação de sonho mal? Como se fora caso de vida ou morte... esses fatos futuros, que eu achava que desconhecia, já estavam me abalando... E de repente, minha cabeça começa a latejar horrivelmente. Seria outro dia maluco, como tinha sido algum tempo atrás, quando coisas estranhas começaram a dar sinal? O que estaria acontecendo aos meus olhos. Estaria eu tendo alguma doença desconhecida? Resolvi reagir a toda essa loucura que estava me tomando, me torturando, como se eu fosse um robô e devesse obedecer a não sei lá o quê, ou não sei a quem. Perceberam? Alguma coisa estava tomando conta de mim. Isso mesmo, comandava meus olhos, e eu via. Via o quê? Não, vocês não podem imaginar o que eu via!

Engreno a primeira e rápido breco para não atropelar a moça que atravessa em minha frente, vira-se para mim, e um brilho estranho é emanado de seus lábios. Mais percebo do que vejo. Intrigado, fico toda a vida olhando pelo espelho retrovisor para entender. Então, escuto o apito do guarda de trânsito arrebentando os tímpanos e percebo o brilho: idiota! - que fica flutuando a certa distância. O carro pára quase na esquina, e percebo a sua silhueta quase à minha frente. Tento fechar os olhos, mas como guiar? Torno a abri-los e lá vem... preciso mostrar serviço... vou multar esse bobalhão... se ele avançar... - aparece a frase brilhante de sua boca. Seguro o carro, para não andar um milímetro sequer, abre o sinal, continuo. O suor poreja minha fronte. Na quadra seguinte... o homem do caminhão: Passo em cima desse idiota. Como segura o trânsito! - Aperto a direção do carro. Estou péssimo e realmente tudo se embaralha em minha vista e só vejo o que não quero. Contorno e desço para a garagem, estaciono. O manobrista se aproxima sorridente e amavelmente me diz: Bom dia! - E horrorizado vejo em luz forte - como estaciona mal. ...se esse idiota não der minha gorjeta... - fecho os olhos e tateio o elevador. Subo para o 3ºandar. Cumprimento a moça da recepção. Bom dia, senhor... Como é feio! Tem cara mesmo é de pastel, eu hem?... O suor escorre pelo meu pescoço. Meu sossego foi quebrado definitivamente. Meu olho esquerdo começa a tremer, dando aviso de estranho, estranho... Sigo apreensivo, tentando manter a calma. Passo pela secretária rapidamente. Fecho-me em minha sala. Viro-me daqui e dali à procura de paz, de calma salvadora à minha frente. Respiro fundo.

Minha secretária bate à porta Entre, Eunice - pão duro, quando virá o aumento? - Tento fechar imediatamente os olhos. Bom dia! O senhor não passa bem? - pergunta assustada. Reanimado pelo tom cortês abro os olhos e vejo claramente, escrito em seus lábios, com todas as letras... se esse cara chato bater as botas, fico sem emprego... - Saia, Eunice, eu chamo depois. Senti profunda falta de ar, e a iniqüidade do ser humano. Tentando disfarçar, chamo o boy e peço com certa urgência - Vá ao primeiro camelô que encontrar e compre uns óculos grandes, curvos e bem, bem escuros, maiores que este, está bem? Tá bem, chefe - o diabo que te carregue, acabei de tomar café, não tenho sossego, ache ! - Estremeço.

Finalmente, sento-me e pego os papéis empilhados à esquerda e começo a despachá-los, sem prestar muita atenção. Minha irritação e meu susto são tão grandes que necessito recompor o fôlego em grandes respirações. O boy entrega-me o embrulho. Abro. Suspiro. Horrivelmente grande e negro, como pedi. Quando vou pô-los... quase nos olhos, a secretária adianta-se e assustada pergunta apontando meu rosto: Patrãozinho o que e´ isso? - mais parece uma coruja, coitado, como é feio! - Acabo de colocá-los rápido. Deu certo, e passo a usá-los. Quase sorrio de alegria... a mais pura, aquela que pode me tirar daquele mal-estar insano, pois passo a ver somente umas luzinhas na boca das pessoas. Volta o fôlego.

- Tem recado? Sim, a Cobrança. Ah! A D. Marieta telefonou! Diga-lhe que não estou bem e que hoje irei direto para casa, PAM! - dando um murro na mesa - ela estremece. O mal humor correu o andar todo até a mulher do bolinho-para-acompanhar-o-café e transbordou até o andar de baixo. Começam instintivamente a andar nas pontas dos pés. Acho melhor tirar de uma vez os óculos. Será que a besta vai se vingar em nóis - brilhou na boca da mulher da limpeza. Ponho os óculos.

Protegido pela grossa e escura armação desse enorme visor, quase me acalmo, pois não percebo mais os pensamentos do pessoal piscando em minha frente. Respiro. Assim o dia passa, e eu em atitude submissa não encaro mais ninguém. Aposento os óculos, até que minha secretária pergunta: - Sr. Chato! Precisa de mais alguma coisa, patrãozinho? - Estremeço. Dou sinal que ela pode ir. Que vá logo. Recoloco os óculos. Respiro fundo e retorno a casa, quase feliz, pois usando os especiais made in camelô, sinto um quase sossego.

No outro dia, a secretária amável: Patrãozinho, hoje é seu dia, não é? Mais um aninho, hem? - Uau, como disse? Como você sabe? Bem, parece que... foi a D. Marieta, aquela moça italiana que falou que ia dar uma festa surpresa. Ai!, já falei, agora não será mais surpresa! - tampou a boca, vexada. Moça, nem pensar nisso. Dê uma desculpa, e fale que eu, mais tarde passo na casa dela e só.

Afasto-me de todos e principalmente de Marieta, minha amada, pois não poderia suportar sequer pensar em ver seus pensamentos. A semana passa assim, assustadora. Alguns dias depois, na verdade, não sei quantos, pois fui perdendo a noção do tempo, mal agüentando a realidade espantosa que virou a minha vida. Eu estava vendo o invisível! O invisível da nossa vida suja.

Eunice pergunta-me se é para mandar convites para a minha namorada e os outros, pois, no meu aniversário, costumo convidar o meu pequeno mas seleto grupo de amigos. Eu não poderia! Amigos? Até que ponto? Já não sabia dizer, meu deus! E de repente, assusto-me. Teria que enfrentar uma festa? Já estou afastado deles há quase um mês. Como sair desta? Nada de festa, pronto, dessa vez não tenho mesmo nada para comemorar. Comemorar a verdade das coisas que me são apresentadas de maneira tão crua? O ser humano em sua dimensão real, percebendo uma realidade de forma tão clara e cruel? Meus olhos estupefatos captando essa realidade? Quem agüentaria? Viver essa vida totalmente iludido? Encarar? Mais tarde dou uma desculpa, me embebedo e tchau.

E pronto o telefone toca e lá vem novamente o convite para o sábado próximo. Estavam com saudades. Queriam fazer a minha festa na casa de Marieta, e confirmar o dia para a comemoração!

Passaram-se três dias. Foram os dias mais insuportáveis da minha vida. Nele eu imaginei qual seria a verdade que iria enfrentar de cada um dos meus pseudo-amigos, agora sabia. Realidade dura, trilha infame, mundo cão. Descubro cada vez mais a baixeza, a vida crua e a duplicidade do ser humano. Era essa a revelação, afinal? Como conviver com ela? Onde os pensamentos amistosos, sinceros, cordiais? Eu, pobre mortal, me contentaria com algum deles, somente. A alegria pura, a amizade sincera... Não sou exigente, compreendo a fraqueza humana... Mas o que tem se passado em minha vida?! Insuportável, simplesmente insuportável. Nunca contei a ninguém sobre tudo o que suportei da raça humana nesses dias. Para que contar? A sordidez, ao expô-la teria que admiti-la. Não poderia. E esse processo estranho? O que estava se passando comigo? Até quando? De que forma surgiu? E principalmente, para que serviria, eu conhecer toda a maldade do homem? Para quê?

Um banho relaxante, uma TV, uma cachaça temperada, toca o telefone. Marieta, com seu sotaque, abre o jogo: Venha, caro mio, estamos todos reunidos para uma champanha. Toda a turma! Incrusive o seu chefe, tá bem, belo? Puxa, pensei, era melhor fazer uma força e ir. Tá bom, logo mais estou chegando. Um bacio, me esforcei.

Arrumo-me para a festa com o maior esforço. Tomo uns bons drinques para enfrentar essa realidade que eu não supunha tão obscena... Como estava acostumado, vesti-me com apuro, colônia discreta, um toque de seda na lapela. Uma gravata italiana, presente da amada, apanho os sedutores óculos. Dirijo-me para o conversível amarelo ovo, já meio-meio alegre, sem esquecer a máquina filmadora, especial para boas fotos. Num salto ágil pulo para o carro, reajusto a direção conforme minhas medidas e dou uma arrancada. Após vinte minutos, rodeio o jardim da residência, estaciono ao lado da porta, apanho a máquina, coloco os lindos óculos e esquecido das mágoas, aproximo-me rápido da porta.

Nem bem bato a belíssima aldrava de bronze, as portas se escancararam e um coral de mais de vinte amigos com o Parabéns a Você. Apesar do susto, rápido, empunho a máquina e filmo a cena toda. Beijinhos, abraços, aquele grupo animado conseguiu alegrar-me.Por que os óculos? Meus óculos? Desculpas. Bem uma ligeira inflamação. Olhem! Nada de mais. Não, não posso tirar. Os champanhes espocam. Muitas risadas. Começo a perceber as luzinhas na boca de todos. Desvio o pensamento. Alegria, presentes, tapinhas nas costas.

Se soubessem! A festa foi correndo amistosa, afável, alegremente, com muita emoção, vibrante! Vinhos e deliciosos canapês. Esqueço-me de tudo, e viajo naquele sonho de felicidade, apesar de muitas luzinhas ao falar com meus amigos e principalmente com a querida Marieta. Finjo para mim mesmo, e a noite corre feliz. Petiscos deliciosos e bebidas. Tudo em paz, nada mais me aborreceu. Consegui tornar-me quase feliz. Dei volta ao drama, e no final, me sentindo atordoado, não podendo mais esticar, após belas despedidas e beijos retorno a casa,bêbado eu sei, mas alegre e penso que tudo era um sonho, querendo fugir dessa duplicidade tão pouco suportável.

Entro. Meio bêbado. Vou para a TV para passar a filmagem. As imagens perfeitas... A entrada festiva... As pessoas sorridentes. Nos lábios, as luzes tremelicando. Meu amigo: como é petulante; meu vizinho: aturar esse cara o ano inteiro, ufa! ; meu chefe: como é burro, talvez eu o despeça; minha amada: transo com outro e esse imbecille não percebe... Deixei-me cair no divã estupefato. Ao revelar a filmagem, para o meu pavor, revelo mais uma vez o mundo sórdido, infame que já supunha. Em cada boca, que na festa me cumprimentou e me beijou, em cada boca, leio a sentença de morte que agora aí está estampada e que irá selar a minha vida. Pobre Marieta, como você me amaldiçoou nesses últimos meses. Mas... sempre sorrindo...


Sim, darei descanso a todos, não mais imporei esta presença tão odiada a vocês, queridos amigos! É por isso que agora, tiro os meus óculos escuros e abro os meus olhos. Já não importa. No entanto, peço desculpas, mas preciso entender a vida, a vida maior, não o significado obtuso desta, pois essa realidade não é a real, impossível. Preciso da outra, mais verdadeira. Parto, queridos amigos, com um grande abraço amoroso e fraternal, à prova de quaisquer olhos muito abertos.

A culpa com certeza não é desse mundo, nem de vocês. Por que me indignar tanto? Talvez a resposta aqui, nem seja necessária. O difícil é entender porque fui eu o escolhido para passar por essa desastrosa realidade. Está bem, eu me ofereço em sacrifício para descobrir a resposta.A verdadeira resposta. Quero entender o lado de lá, quero realmente entender, preciso ver o que esta além dos fatos.

A vida, agora eu sei, é uma ilusão!Qual é a minha realidade, a realidade de todos? Eis a revelação. Eu sempre intuí esse lado mau. Mas por que eu? Por que fui escolhido? Todos sabem, mas ninguém enfrenta isso com tanta clareza, nem lhes é revelado com tanta crueldade. Eis a verdade dessa vida suja.

Que calor insuportável nesse meu corpo frágil. Saber dos pensamentos mais íntimos e verdadeiros das pessoas que eu quero bem! Nossa, começo a tremer e a suar. Sinto-me muito mal, infinitamente triste. Vou tirar o casaco...a gravata... Que gravata colorida Marieta me deu! Verde! É com certeza a cor da esperança... Terei alguma? Como conviver com isso? Não, não posso ir adiante. Não posso. Ah, desespero! Sim, essa seria uma bela saída...

O banquinho tombou.

 
 

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