A CENA NOS TEUS OLHOS
Daniela Silva
 
 

Eu lembro que chamavas meu nome na janela, com a voz quente de criança, híbrida de sonho e de agora. Lembro de cada suspiro insistente, da testa colada no portão, e dos lábios contraídos em protesto a cada vez que ouvia uma negativa minha. "Se você não for eu não sou mais sua amiga".

E eu, eu que odiava chantagem, eu que não entendia nada da força que envolvia aquele chamado, saia de casa enfezado, a seguir-te por sobre a cidade. Resistia a teu riso, por cinco minutos. "Se essa rua, se essa rua fosse minha". Fingia que tua música me irritava, mas rendia-me aos poucos enquanto me puxavas pela mão. Nessa hora - no segundo do toque dos nossos dedos, até chegarmos à porta do cinema - lembro que tinha vergonha dos meninos que nos viam, uma vergonha que eu não sabia bem do que era, mas que passava no segundo em que entrávamos na sala de projeção.

Lá adivinhavas o futuro e querias ser atriz, bailarina alada, estampa viva nas telas de um mundo do qual só tu conhecias a extensão. Imitavas os trejeitos da mocinha, repetias suas falas baixinho, pra que eu escutasse e dissesse se estava parecido, se soava tão bonito quanto. Foram tantas vezes, e eu lembro de sempre ter dito que sim.

Eu também lembro que foi numa dessas tardes que aconteceu. Veio simples como a luz se apaga, e mágico como a imagem se projeta no painel. Na cena triste que sempre havia, ao invés de olhares blasé pro próprio queixo, forçando a lágrima que eu deveria enxugar, como sempre tu fazias, fixaste a atenção na cena pra ouvir. O filme falava de nós. Denunciava nosso pecado incógnito, porque amávamos, e éramos crianças, mas ainda assim amávamos. Estava tudo lá, escancarado no cinema. Na fala do ator que, saudoso das tardes com a amada que partira, denunciava nossa própria dependência e nosso próprio temor.

E teus olhos olharam os meus. E entraram pelo meu corpo, e encheram precisos o espaço que, enfim eu sabia, sempre fora teu. Teus olhos me assombravam num convite. E eu, que tinha medo do futuro, só pedi que não fosse cedo demais pra crescer.

 
 

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