COMO ÓLEO SOBRE ÁGUA
Lia Falcão
 
 

“A verdade alivia mais do que machuca.
E estará sempre acima de qualquer falsidade como óleo sobre água...”
Miguel de Cervantes

Como diz um poeta, a vulgaridade é um lar e, naqueles dias, num acesso de vulgarismo, infelizmente, teve de levar sua alma a um almoço entre parentes distantes, num clássico exercício de regular hipocrisia social. Ao ar livre.

A parentada gostava dessas agremiações e, vez ou outra, não havia como escapar de uma ou outra festividade. Para ela, eram apenas vidas alheias à margem da sua que, freneticamente, se ajuntavam para encenar mais uma farsa, mais um teatrinho tragicômico, onde não faltavam as máscaras e os sufocantes abraços cheios de tentáculos, como polvos fora d'água. Nauseante.

Sentia-se pouco à vontade à sombra das mesas atabalhoadas de comidas e, ordinariamente, tinha ânsias de escafeder-se diante dos sorrisos amarelos ofertados pelos transeuntes. (Há mais sobras de venenos e material bélico e veneninhos nessas reuniões parentais do imagina nossa vã filosofia).

Sentou-se à beira de uma mesinha qualquer, antes que fosse atropelada pelos babados das peruas de plantão e, querendo ou não, ouvia no burburinho, as conversas entremeadas de risinhos sarcásticos e notas peçonhentas: - Nossa, como você mudou! Essa era a frase-feita de cêra que mascarava o dizer que aquela pobre na verdade estava mais velha ou tinha umas rugas aparentes... - E aí, como vai? Outra frase criada para não se ouvir resposta pois, antes que qualquer coisa fosse dita a respeito, o interlocutor já estava de costas desencavando outra fofoquinha fresca.

Preferia uma bomba nuclear àquelas bombas de chocolate nauseabundas, regadas a saudações vulgares e respostas ocas e sem valia: – Soube que viajou sozinha depois do último curso, verdade? Sem se preocupar com a veracidade da informação, a outra queria mesmo era saber de algum detalhe sórdido porventura acontecido naquela escapadela.

Nauseada, desconversou tudo quanto pode e driblou, com zagueirice digna de copa-mundi, a enxurrada de perguntas desses aparentados que há muito não encontrava. Tentou ser complacente com um, esforçou-se por não enxergar a estupidez surreal do outro...A verdade é que sempre tivera tendências misantrópicas, isso não era segredo para ninguém. Mas estas saudações vulgares do front, sempre feitas de uma forma tão vazia de sentimentos, decididamente, afastava-a de vez desse convívio social pois, desde miúda, tinha grande prazer na sinceridade e na espontaneidade, ainda que com estranhos. Coisa terrível é ter de sobreviver a própria família!

Achou uma brecha e levantou-se, tentando esgueirar-se pela parentalha. Sorriu seu sorriso de Alice correndo atrás do Gato e do Coelho do Relógio e, já meio desesperada, na saída, um velho aparentado, famoso por sua língua ferina, não lhe poupou superlativos: - Você está cada dia mais bonita e elegantíssima: qual a receita dessa juventude toda menina, me conta, ahn? Diplomática, esquivou-se: - São teus olhos, Serafim, teus olhos! Não tomaria jamais para si tal elogio, pois a criatura, além de perfeito hipócrita, era um míope inoperável.

Despejou o excesso de oleosidade do aperto de mãos num guardanapo e absurdou-se dali pra fora. Preferia continuar impermeável, no seu mundinho cheio de problemões e de tomadas de decisões sérias e irrevogáveis. Contudo, repleto de verdades deliciosas e abolutamente transparentes. Como a água das cataratas sobre os imensos lodaçais...

 
 

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