OS OLHOS DE VERA LUCIA
Roberto Amancio
 
 

Se tivesse que definir o que sentia por ele, diria que era desejo puro. Desejo mais forte que a paixão e mais voraz que a fome. Desejo.

Ele, Ian, estava no palco. Seus cabelos negros umedecidos pelo suor, jogados sobre o rosto. Esguio a elegante com sua guitarra reinando sobre as crianças que se debatiam dentro da caixa de som. Seus olhos negros mal viam os outros garotos no palco. Eram apenas outros. Ele, Ian, era o motivo por todos estarem ali.

Ele observava Ian. A pele de suas costas arrebentava como uma mortalha velha, mas estava bem. Ele quase podia tocar o corpo limpo e claro do menino, que fascinava as crianças. Ele, um velho tão velho quanto um homem se permite ser, estava ali para possuí-lo. Porque ele o desejava para si.

Hipólita, ou Vera Lúcia como tinha nascido, já estava fora do ar. Seu corpo se mexia em harmonia com as batidas da música e a voz suave que se lamentava e dizia aquilo que ela, Vera Lúcia, tinha medo de pensar e que ela, Hipólita, não sabia como dizer. Se ela pudesse ser alguém, queria ser Ian, ser livre. Poder destruir-se por seus desejos e cortar-se, sangrar e renascer para um novo amante. Ao mesmo tempo que Ian sussurrava o quanto é doce o próprio sangue quando não se tem mais ninguém, Hipólita observava o homem. Ele se destacava no meio da multidão de preto com monstros nas camisas. Enquanto a maioria ainda tinha cicatrizes das espinhas, ele tinha linhas rugas coroando os olhos azuis. Seus olhos brilhavam por Ian como os de um pai, não, como os de um amante orgulhoso e ciumento. Ninguém jamais havia olhado para Vera assim... Ele vestia um casaco cinza-cor-de-poeira e parecia uma ilha no meio da noite. Hipólita queria provar aqueles lábios pequenos. Era fácil, sabia como fazer. Ian dizia algo sobre amantes que nos ferem por não saber o que fazer. Mas ela sabia. Ela queria aqueles olhos azuis pregados em seu corpo.

Ela se aproximou e roçou as costas na barriga do Olhos Azuis. Ele a desejaria, porque ela era Hipólita. Ela mal podia sentir a respiração do Olhos Azuis, mas podia sentir que ele havia sealeterado. Podia. Então ela se virou e, sentindo a poeira do casaco se desprender, procurou os lábios de seu novo amante.

- Nem para isto seu pai lhe quer. - Os olhos azuis elétricos lhe transpassaram. Vera Lúcia quis gritar, mas a música era mais alta, mais desesperada do que ela. Tudo era maior do que ela, tudo era mais importante.

Vera Lúcia foi para casa. Deitou-se em sua cama e escutou o seu pai roncar no outro quarto com sua amante de 22 anos. Vera Lúcia se masturbou tristemente até obter um orgasmo de ancas erguidas e lábios mordidos. Depois chorou um pouco, pois o que desejava era doença. Mas, desejava. Então foi ao banheiro e procurou os remédios de sua mãe e adormeceu tão profundamente que nunca mais acordou.

Olhos Azuis tirou os olhos da pequena aleijada. Não era por ela que estava ali. Ele quase podia sentir os ossos de Ian se moverem sob a pele clara. As costas tensas roçando na camisa de seda clara. Ele era um anjo maculado pela sujeira daqueles vândalos.

Sim, hoje, ele iria ter aquele corpo que todos desejavam. Teria sua voz e seus lábios. Ele sentiu que suas costas estavam úmidas e que uma dor surda se espalhava, porém poderia esperar até o final do show.

Lembrou-se de quando conheceu Ian e sorriu. Ele tinha menos de dez anos, dez anos atrás. Ele tinha a pele macia, sem um arranhão. Um menino que não tinha cicatrizes nos joelhos. Havia amado seus cílios, longos e negros, e as unhas pequeninas. Ele atravessou a rua para poder toca-lo, senti-lo real em suas mãos. Chegou a tocar seus cabelos macios, mas controlou-se. Nunca havia possuído alguém tão jovem. Não sabia quais seriam as conseqüências. A irmã do menino o chamou para casa e ele foi em seu short preto. E ele começou a observa-lo. Ver sua voz mudar e seu corpo ficar forte. Imaculado pelo tempo. Sem marcas. E esperando por ele.

O show terminara. A próxima banda já estava a postos. E banda de Ian se retirou para um arremedo do camarim. Uma sala suja próxima ao banheiro dos funcionários. Kal, o baixista, observou que "o maior fã" estava lá. Ian riu, talvez fosse de alguma gravadora e finalmente eles gravariam suas músicas. Depois... A eternidade! Ian riu. As pessoas achavam seu olhar distante no palco, vazio, hipnótico. Mas, poucos sabiam que ele era míope. Sabia da existência de "o maior fã" porque os outros haviam notado. Ele tinha de se preocupar com os fios espalhados pelo palco.

- Vou tomar um banho. - Ian saiu para o banheiro. Não gostava de ver os braços feridos e as veias saltadas. Por isso, tomava banho e ia embora.

No banheiro podia ouvir distante o som da banda The Room, em uma interminável versão de The End do Door. Necrofilia, pensou Ian. Despiu-se, mas havia algo errado, como encontrar uma mancha de sangue em uma camisa nova em folha. A água fria caiu em seu corpo, arrepiando sua pele. Era bom sentir a si mesmo. A própria pele e pelos Então sentiu uma mão fria em suas costas.

Virou-se assustado. Não estava só no banheiro? Havia uma vadia com ele? Então sentiu lábios secos cobrirem os seus. Flores mortas em seu caixão.

Olhos Azuis sentiu o garoto ficar excitado. Era normal, o sangue se agitou pelo medo de tal forma que se transformou em desejo. Ele sentiu as mãos de Ian se cravarem em sua carne apodrecida. Os dedos de Ian deflorando a carne, tirando pétalas de pele, chegando quase aos ossos ressecados. E o homem o penetrava com força e brandura.

Ian sentiu medo e repulsa. Mas, logo se entregou, pois era uma sensação agradável de perda, semelhante a dos viciados...dos amantes. E logo ele apagou sentindo que gozava pela última vez. Enquanto a poeira cobria-lhe o corpo e sua alma o abandonava.

Ian voltou do banho. Usava apenas uma toalha enrolada no corpo. Sorria, satisfeito.

Kal foi o primeiro a notar algo diferente. Ian em geral vestia-se só, e não gostava de exibir seu belo corpo.

- Finalmente, escutou meu conselho. Como se sente?

Ian observava os próprios braços e mãos. Sorriu para si mesmo.

- Com o quê, garoto

- Com as lentes. Você não esta usando lentes de contato?

- Lentes? Sim.

Kal riu e tocou o ombro de Ian. Sentiu leve arrepio e um cheiro estranho. Sua mente o levou ao sótão da casa de seus pais.

- Foi uma boa escolha...azul intenso . Ficaram ótimas em você. Cabelos negros e olhos azuis.

Ian olhou para o espelho quebrado e ficou se admirando.

- Sim, ficou perfeito... ficarei com ele o máximo de tempo possível...

 
 

fale com o autor