CLÉO
Beto Muniz
 
 

Era um local ermo, bem poderia ser um pasto ou mesmo um galpão de fábrica, mas era um escritório de repartições repleto de mesas, cadeiras e paletós. Eu estava lá, Cleonice também, e dentro era tão iluminado que em nenhum dos cantos e reentrâncias existia sombras, estando dia ou noite aberta. Eu apontava lápis e mais lápis coloridos como se fosse um menino em tarefa desnecessária colando os restos de madeira numa folha branca, construindo uma viagem abstrata. O azul dentro do vermelho, o vermelho dentro do verde, o verde dentro do amarelo, o amarelo dentro do cinza, o cinza dentro de mim apontando lápis e sombras que as luzes não venciam.

Eu estava distante da penugem transparente na nuca da Cléo, estava então incompleto. Era um jovem-antigo no desejo e na equação dos paletós que se foram. A boca semi-aberta alimentando-se de esperanças luzes e expectativas. A mão frenética torcendo a madeira dura e o sexo intumescido, pleno de si e faminto. Um fogo incontido iluminando sem chamas da minha metade para baixo.

Fiquei na parte mais iluminada de mim escondendo excêntricas sombras. A mão me punha ausente, as cores pendiam para dentro ofertando ao olfato os vapores de suores discretos e a doce quentura de carne friccionada. Se Cleonice virasse o decote para meu lado veria, através dos restos de madeira na brancura da folha, a imagem do lápis se acabando e as cores no papel permanecendo cinzas, e esfriando num vai e vem de vagas quentes.

 
 

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