O MENINO E O TIO
Osvaldo Pastorelli
 
 

Feito intrépido Rocicler enfrentando a poeirenta estrada, o velho caminhão apelidado carinhosamente de Mazzarope resfolegava em mais uma viagem transportando o pessoal.

Em pé na carroceria junto com os outros, ele se equilibrava numa disfarçada brincadeira para ver quem permaneceria mais tempo em pé. Brincadeira estúpida, não gostava. Preferia ficar deitado no assoalho de tábuas brancas que exalava cheiro de cevada contemplando o céu azul, mas como estavam em mais de vinte pessoas era obrigado a participar dessa brincadeira boba.

Seus olhos castanhos esverdeados claro lembravam os olhos da vó dardejavam um inquieto brilho de raiva, duro, magoado, de quem espera uma oportunidade, e quando ela chegasse não iria perdê-la, ah! não, não iria perdê-la por nada, seria seu passaporte para a vida futura.

A humilhação queimava na mente como ferro em brasa. Os ouvidos martelavam as gozações, as risadas ao verem ele sem calça, nu, pelado na frente de todos. O tio, irmão mais velho da sua mãe, segurando sua calça era quem mais gozava da sua cara. Como odiara o tio, odiara aquele momento. Seus olhos fuzilaram o tio, seus dentes rangeram um contra o outro num ódio imenso. Nada pudera fazer, a não ser se esconder. Num safanão arrancara a calça da mão do tio e fugira. Ah! ele não perdia por esperar.

Chegavam a cidade.

Parariam na casa do tio como faziam toda vez que havia matança de porcos, para a distribuição do quinhão pertencentes a cada uma das famílias. Era nesse momento que ele iria ter a chance. Era só ficar de olho aberto, vigiando.

Enquanto o velho Mazzarope atravessava a rodovia entrando na cidade, revia os acontecimentos que gostaria nunca ter acontecido. Descendo do caminhão no pátio da fazenda, a primeira coisa que viu foi os porcos sacrificados. Um estava em cima da mesa sendo destrinchado pelas mulheres, o outro boiava num tacho de água super quente, e logo mais adiante, perto do chiqueiro, um terceiro guinchava e se esperneava percebendo seu destino. Por fim, se rendendo deixou-se esfaquear pela mão firme do tio que decidido enterrou fundo a faca pontuda na carne do animal espirrando sangue que fora recolhido numa grande caneca.

E quando arrumavam as coisas para virem embora, o tio teve a infeliz idéia de arrancar sua calça na frente de todos. O que lhe doía não era o fato de ficar nu, as gozações, os deboches, as risadas das meninas, das mulheres, e sim, o não poder se defender, o não poder revidar o tio sendo obrigado ao vexame.

Vigiando os movimentos viu quando o tio ao chegarem foi deitar-se para um pequeno e leve descanso. Esperou até que o tio fechou os olhos e devagar, sem fazer ruído, chegou bem perto. Sentia até o hálito do ronco.

Não esperou mais. Desceu a mão em cheio num tapa estrondoso no rosto do tio que assustado não teve tempo de segurar o sobrinho que em desabalada carreira fugia do quarto.

A partir desse dia nunca mais falou com o tio.

 
 

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