JESUS ME AMA
Bárbara Helena
 
 

A multidão se comprimia, suada, arquejante. Dois homens enormes, cabelos bem penteados de grude preto, tentavam arrumar a fila. Povo gemia, cantava, alguns tentavam se jogar em chão impossível. Mar ondulante não deixava brechas para excesso de piedade. O microfone jorrava voz do Pastor, ampliada milhares de vezes nos alto-falantes, tonitruante como o apocalipse:

- Irmãos! Jesus vos ama, irmãos. Entregai-vos a Jesus! Jesusss! Jesusss! Enviai sua benção sobre todos estes irmãos que aqui vos suplicam, Senhor Jesus! afastai deles o demônio! Fora Satanás!

Ao ouvir o nome do capeta, o povo se crispou em vagas de horror e repetiu:

- Fora Satanás! Foraaaa!

A histeria começava a atingir um ponto perigoso para quantidade tão grande de pessoas empilhadas. O pastor mudou sua entonação, tornou-a leve, íntima:

- Jesus, nós te amamos, Jesus!

Regidos pelo maestro, os pobres, miseráveis, famintos, cansados, doentes se acalmaram e lágrimas começaram a correr dos olhos públicos.

- Jesus ama vocês, cada um de vocês...

Envolvidos pela voz macia, treinada, do locutor de Deus, homens e mulheres apertados no galpão se emocionavam, comoviam-se, entregavam-se totalmente a piedade e ao amor. Jesus nos ama.

Encostado na parede, protegido pela muleta, o rapaz tentava impedir que a ferida da perna fosse aberta pelo roçar dos vizinhos enlouquecidos na fé. Tinha fome, pois há quase um dia não comia nada. Acordara cedo. Disseram que a Igreja dava lanches, mas só recebera chuva de água benta, palavras e suor fedido dos companheiros.

Rumbeira, agora Irmã Dolores, a convertida, afirmava na fé que o pastor curava tudo. A ferida na perna era provação do demônio, ele devia ir na Igreja, encontrar Jesus... E mais um monte de coisas que entrara por um ouvido e saíra pelo outro. Só ficara a frase do cura tudo. Quem sabe? A ferida durava mais de dois meses, desde que o fragmento da bala perdida, na curva do Calombo, tinha criado um buraco negro que não fechava, por mais ervas que a avó colocasse ou por mais rezas que deitasse sobre o pus. Dinheiro pra remédio de rico não tinha. Posto Médico tava falido, nem doutor pra olhar e mandar voltar seis meses depois. Conseguira, com muita espera, curativo do enfermeiro, cunhado da Milica.

Agora estava ali, suado, com fome, a danada da perna latejando e ouvindo aquele monte de besteiras do pastor. Será que tinha mesmo poder de curar? A Rumbeira dizia que ficara curada de uma tísica, do tempo da vida. Era puta virara crente.Tremendo milagre. Mas para isto precisava passar pela droga da fila. Amontoado, empurrado, tentando proteger a perna que purgava sobre o curativo velho.

- Jesusss!... seus ouvidos cansados da repetição, tentavam lembrar de algum rap. Droga! Devia ter trazido um som. Mas os caras não permitiam, lógico, imbecil. Onde já se viu? Ficar ouvindo musica do demônio na Igreja de Cristo? Jesus nos ama.

Finalmente, cansado, esfomeado, zonzo, rolou até perto do pastor.

- Irmão... tenha fé. Jesus vai te curar. Cura Jesus! – A voz ressoava pelo galpão, distribuída pelos alto-falantes.

A multidão repetiu em eco:

- Cura Jesus!

Empurrado pelo pastor, caiu de joelhos, gritando de dor:

- Cura Jesus!..

A cabeça chacoalhada na mão do homem santo. Perdeu a pouca paciência, deu um safanão no maldito. Três seguranças de cabelo gomalinado correram, o pastor levantou a mão, impediu que tocassem nele, sentindo a hora certa:

- Afasta-te deste homem, Satanás, Deixa esta alma que pertence a Jesus. Fora Demonio!!! Queima, Capeta!!!

O rapaz ficou ainda mais tonto com a gritaria, parou de se debater. De algum lugar uma luz brilhava, as vozes ficavam mais altas, cabeça girava:

- Jesus, salva esta alma. Cura, cura!!! – a voz era envolvente, carinhosa, imperativa.

Uma dor profunda, que vinha do fundo dos tempos lancetou a perna, a alma o coração endurecido pela safadeza da vida. Jesus me ama. A mim.

O pastor o abraçava, empurrava sua cabeça contra o terno caro, que cheirava a sucesso. Cheiro de pai bom, de pai que não abandona. Perfume de brinquedo reencontrado. De algum lugar dentro dele brotou a fonte do choro, convulsivo, derramado, gêiser quente de lavas vulcânicas, rompendo as camadas endurecidas.

O pastor gritou, triunfante

- Aleluia!

A multidão repetia enlouquecida e convicta:

- Aleluia!

- Obrigado, Jesus! Obrigado.

Muitos choravam. Ondas convulsionavam o mar humano. O rapaz não parava de soluçar. Atrás começaram a ficar impacientes, desfeito o clima, a hora se esgotara. Com perfeita noção de tempo, o pastor o empurrou gentilmente para longe do seu raio de ação e ele foi. Engolfado, empurrado carregado.

Atravessou a porta, ainda zonzo. Era noite já. Piscou, limpando o resto de comoção com a mão suada. A perna latejava de novo, mais forte. Levantou o curativo molhado e olhou a ferida. O pus escorria amarelado, a casca cercava o buraco negro. Achou que estava melhor. Parecia haver uma pequena cicatrização no canto esquerdo. Depositou dez reais na caixa do templo. Era tudo que tinha, mas valera a pena. Jesus me ama.

 
 

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