SANGUE DE KETCHUP
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 

a chaga, a primeira, surgiu justo no pé esquerdo do santo, o que estava quase coberto pelo manto de mármore. as pessoas no entanto passaram apressadas arrastando suas preocupações, agendando seus compromissos, definindo suas prioridades e objetivos, cumprindo suas metas, voando baixo nos seus devaneios baratos, tentando compensar com ganhos materiais as perdas inerentes à sua explicita pobreza de espírito - e nem aí com o que estava acontecendo.

então, como sempre fazia quando a frágil saúde lhe permitia, o velhinho veio sentar-se no banco da praça, em frente à imagem do santo, para tomar sol e dar milho aos pombos de asas sujas. ninguém gostava de pombos. talvez nem ele próprio gostasse. pombinha branca da paz não há num cenário traçado por fuligem e violência. os pombos eram meros mendigos alados e o velho, apenas um velho ateu, um monumento de mãos tremulas que tossia e se decompunha.

num sábado de manhã, a segunda chaga entreabriu-se rubra no pé direito do santo e o filete viscoso que dela brotou escorreu direto sob a sola das suas sandálias de pescador. um pombo intrometido e de pouca fé foi lá conferir se era algo palatável, bicou uma, duas vezes e caiu duro. o varredor de rua diligente recolheu-o com uma pá e atirou-o num cesto de lixo abarrotado. ficou lá, as perninhas crispadas para cima, sem que ninguém desse pela sua falta.

estigmata. esse era o título do filme em cartaz na sala antiga em frente à praça, recém-reformada por conta de um projeto de revitalização do centro velho. sobre o fenômeno das chagas de cristo que se reproduzem nos homens. o velho tinha assistido a fita sem se comover. passou dos setenta, alguns privilégios: atendimento vip em banco, passagem de ônibus e ingresso em teatro ou cinema de graça.

nas mãos piedosas do santo, rosário com cruz envolto nos dedos, o velhinho viu aflorarem duas profundas feridas. poderia exclamar o que é isso, meu deus! mas não o fez. nunca pronunciava o nome de deus. nem em vão. era ateu e comunista convicto. morreria antes de trair seus princípios. mas mesmo assim, movido pela mesma curiosidade que matou o pombo, aproximou-se arrastando os pés cansados, ajustou os óculos de grau e assistiu desconfiado ao suposto fenômeno. atrás dele, percebeu, foi ajuntando-se uma multidão de curiosos, a maioria desocupados, que dava opiniões controversas, tecia comentários exaltados, discutia calorosamente, ria nervosa, chorava copiosamente, abusava do desdém, formava correntes fervorosas de oração - a religião era o ópio do povo.

ele não podia nem queria crer. então para dispersar os intrusos do seu refúgio de paz, ele deu as costas para o santo e encarou a multidão. fizera isso a vida toda em greves e manifestações, em assembléias e marchas. pediu a palavra, falou em fraude e farsa, e pediu que não se deixassem enganar. para provar que não havia nada de sobrenatural naquilo tudo, tocou o indicador direito num dos sulcos abertos nas mãos da imagem, umedeceu-o no liquido encarnado e morno, e levou-o à boca. o gosto era agridoce.

"ketchup!", bradou, como se tivesse descoberto a pólvora. "é apenas ketchup!"

as pessoas não queriam acreditar. uma brincadeira de mau-gosto. o mc donalds suspeito no outro lado da praça. muitos aproximaram-se e provaram daquele sangue. depois seguiram seus caminhos frustrados, derrotados, desesperançados como se seu time do coração houvesse sido rebaixado, como se o céu fosse desabar sobre suas cabeças

restou o velhinho, só e vitorioso, na praça, com seus séquito de pombos . de repente, algo brotando das gengivas, expulsando a dentadura. dentes. dentes brancos e fortes. dentes bem alinhados e brilhantes. dentes preenchendo o vazio murcho das bochechas lhe restituindo o sorriso.

um milagre? ele não queria admitir. não podia admitir jamais. apostaria todos aqueles dentes que não.

dali mesmo, do seu banco cativo, ele viu sem precisar dos óculos de grau, brotar, à esquerda do peito sólido da imagem sacra, a quinta e última chaga. farto daquilo tudo ergueu-se sem esforço, cruzou a praça em passos lépidos e foi ao cinema. havia um filme novo em cartaz com temática revolucionária.

na bilheteria, a balzaquiana de franja no cabelo e cara de intelectual não o reconheceu, riu e disse:

"por que de graça, senhor? nem cabelos brancos tem!?"

soou como um elogio. e ele se sentiu estranhamente, como há tempos não sentia, tentado a convidá-la para um chope depois da sessão das dez.

 
 

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