AMOR EM TERMOS DE ASFALTO
- Romance do Matuto Castanho Com uma Doutora Galega -
Lia Falcão
 
 
Numa clara manhã de setembro, sexta-feira de trânsito congestionado na Abdias de Carvalho, cuidou o destino de unir um jovem ambulante, ex-militar, de nome Emerson Flávio, e uma galega e solitária advogada, aqui chamada Eliane Jardim, provando que até de uma inesperada falta de gasolina ou de uma simples necessidade transitória, pode surgir uma inusitada porém verdadeira afeição.

Pois bem. Apesar de pouco e franzino, o jovem ambulante Emerson Flávio não sofria de pobreza nem de solidão, pois tinha uma gaitinha e dela tirava as notas principais para alegrar aquela vida de maior abandonado pelo desgoverno que o tornara autônomo e vendedor de bolinhas plásticas coloridas nos semáforos da vida. Tudo fazia para descolar a bóia do dia com alegria e dedicação. Fora, inclusive, militar, com direito a “liforme de botão reluzente” e tudo, mas por ser franzino, cumpriu só seis meses de serviço. Tristeza que ele não gostava de lembrar.

Continuando. Esse servidor público (como gostava de ser chamado) fazia de um tudo para agradar a freguesia da nação de gente que transitava na sua avenida. Do pneu furado ao chilique das madames, lá estava o servidor, prestativo que só ele e daí, ganhou o apelido de ‘Anjo do asfalto’- desses que nos socorrem e nos aliviam nas vicissitudes automobilísticas muito comuns em terras como as nossas, cheias de estradas desgovernadas, pistas esburacadas, asfaltos quebrados e pegando fogo aos primeiros raios de sol recifano.

Num dia assim, aconteceu o que Emerson Flávio jamais tinha posto no seu sentido: o carro de uma bela e simpática 'galega' falhara logo ali, no ‘seu’ sinal de ofício e, sendo 'seu' aquele ponto urbanístico para ganhar a vida, o jeito ali, quem ia dar era ele mesmo: –“Que foi que houve dona madama? Seu motor bateu, foi?” Assuntou o ambulante, já mirando a bem nascida dirigente do automóvel. – “Motor que nada! Acho que o problema é álcool mesmo...Fui beber com uns amigos ontem e só hoje, sexta-feira de manhã, na horinha de ir pro trabalho, foi que me dei conta de que meu carro também bebe...”- Pois não é? E por que não levou o coitado pra beber também?!”Gracejou ele.

Entreolharam-se e, a uma, desataram a rir daquela situação para ambos inusitada: Emerson, já empurrava o carro até o acostamento para não atrapalhar sua freguesia de trânsito. Pensava no juízo: “Coisa mais esquisita gente rica sorrir junto com gente pobre!” A advogada galega, por sua vez, considerava: “Coisa mais esquisita gente pobre espirituosa e tão contente! Nunca vi!”Gostaram disso e então, ela no volante e ele de empurrante, procuraram juntos, um caminho para o posto mais próximo.

Nascia, de repente, um sentimento mútuo entre a advogada e o ambulante, sem ver nem pra quê. Se foi obra do acaso ou do destino, era o que menos Emerson Flávio queria saber. Sabia é que quanto mais empurrava o carro mais apaixonado ficava pela advogada galega que o dirigia. Seu sonho estava ali, na sua frente: uma moça bonita, galega, sorridente, sem preconceito que rira junto com ele como se fossem amigos a vida inteirinha!

Ele pedira, uma vez, uma mulher à Providência, que fosse para acalmar suas ternuras: afinal, nascera pobre e não pra penitente! E aquela 'embalagem' caída do céu em 'seu' sinal era melhor do que sonhara! "Menino! Que mulher linda e sorridente!" Atinava. "E, ainda por cima, precisada de mim!" Era a glória. A advogada, comovida com a presteza tanta desse rapaz, também não negava que sua pele morena lhe chamara atenção juntamente com seu sorriso largo – contagiou-se no coração! Mas não devia! Nem sabia onde ele morava, se era gente de bem, o que fazia da vida! Mas o danado do ambulante promovido a 'Anjo Emerson' era bonito! Lá isso ele era mesmo!

Fato é que em plena sexta-feira de uma manhã de setembro engarrafada, surgiu um sentimento entre eles: apaixonaram-se perdidamente o Anjo Emerson (assim distinto por ela) mais a bela advogada Eliane Jardim (distinta assim por ele). Neste ímpeto de sentimentos ingênuos e fortes, cheios de sinais (literalmente falando, já que o pisca-alerta da moça, digo, do carro dela, estava sempre ligado) surgia, em pleno asfalto, um amor derrubador de cercas e quintais; de fronteiras sociais terrenas e quiçá celestiais! A essa altura, a advogada já nomeara o rapaz de Anjo. De asfalto. Mas Anjo. Sob um sol nordestinado e causticante, continuava o Anjo Emerson a empurrar o palio branco da nobre moça, mesmo azul de fome, com as costas pretas que lhe ardiam no mormaço castigador do juízo e do tino: pela moça, menino, ele empurraria aquele carro era o Recife inteirinho!

A moça galega, muito satisfeita com essa angelical providência, cuidava de ajeitar o câmbio de vez em quando e aproveitava essa mamata para retocar um tiquinho do batom, do cabelo, da maquilagem que já estava meio borrada para sorrir pro rapaz.... Vez em quando, espiava-o pelo retrovisor e seus olhos se encontravam - os sorrisos que Emerson Flávio trocou com a doutora Eliane Jardim continham juras de amor eterno e muitas promessas! Por ela, ele podia continuar a empurrar o carro pelo Recife todinho!

Seduzido o Anjo Emerson Flávio pela galega advogada Eliana Jardim. Amor, em termos de asfalto, era assim: meio cinza, meio quente; ora parado, ora em frente; meio congestionado, meio simplesmente; mas repleto de sinais!

Sorriso vai, batom vem. “-A senhora já é casada?”, “- Não ainda...!”, “- Nunca vou te esquecer”, “- Eu também!”... E lá iam aqueles dois, trocando olhares e juras eternas pelo espelho retrovisor. Empurrão sim. Freio não.

Até que, para surpresa de Emerson, surgiu na paisagem um posto de gasolina com letreiro enorme: “AQUI BREVE, COCA-COLA! TEXACO!” – “Mas olha que desgramado! Quanto mais se reza mais assombração aparece?! Havia de ter um postinho desse no mundo e logo agora?!” Pensava alto e enfezado o Anjo promovido a namorado Emerson Flávio, ex-militar e excluído mas ainda ambulante, enquanto enxugava a fronte castanha que espirrava um suor de apaixonado para sempre, no calor indecente daquele dia. – “Deus é pai! Até que enfim, um posto!”Sorria a advogada agradecida ao Padre Cícero a graça alcançada. Quanto a Emerson, o anjo ambulante, atribuía mesmo era ao diabo aquela “aparição postorífera” fora de hora.

Controlou suas emoções e voltou ao ofício angelical asfaltante: - “Carece vexame não, doutora Eliane. A senhora bota um agrado de álcool no seu carro e bem ali na frente tem uma caixa eletrônica daquelas que engole cartão e vomita dinheiro se a senhora precisar pra comprar na loja ‘dinconveniência’ uma água ou um cachete de cibalena!” Dispunha-se ainda sedutor, o anjo. Emocionada com tanta Providência, quis a moça demonstrar sua muita gratidão: foi ao caixa rápido e sacou a mega quantia de cinco Reais que ofertou ao anjo do asfalto dizendo: - “Sei que a ajuda é pouca pelo muito do esforço, mas é tudo que posso te dar!” disse sem esperar reação de Emerson Flávio, já apaixonado os quatro pneus e um sobressalente pela advogada Eliane Jardim.

Contenteza de pobre dura pouco mesmo! Pensava o ambulante. E eu que pensei que ela estava flertando de namoro comigo! Qual o quê? Estava era me usando pra empurrar o carro dela até o posto e pronto!

E ainda veio me pagar com esta miséria o favor de coração que lhe prestei! Mas tenha santa impaciência! Já tive terra, tive gado e a seca comeu tudo no eito. Vim pra cidade ganhar a vida e me alistei na militância. Franzino como era, só podia dar na despedida mesmo. Mas nunca entreguei os pontos e hoje, ambulante, sou quase dono daquele sinal de trânsito: vendo minhas bolinhas de festa, ajudo a trocar pneu de jipe, acudo tudo e todos, é só chamar que eu vou. Mas por essa eu não esperava.

Gorjeta por favor de sentimento? Ah, não!. Espere aí, dona doutora! Tenho meu orgulho de homem e nesse ninguém bole não! Posso ser pobre, mas penitente inda não sou! -“Doutora, pode guardar seu agrado no bolso que careço dele não! Vendo bolinha em sinal e ganho gorjetas e trocados porque este é meu trabalho, mas por favor satisfeito a gente cobra nada não! Empurrei seu carro légua e meia pela sua formosura e simpatia, por outra coisa não! RIR COMIGO é uma coisa, doutora. RIR DE MIM é outro tostão! Aceite meu obrigado e leve em sua consideração esse meu mimo: meu saco e duas bolinhas – de onde retiraria meu pão. Assim a senhora vai se lembrar pra sempre de mim e dessa situação!”Segurou-se o Anjo Emerson para não chorar ao dizer estas palavras e despedir-se da sua amada. Ele, que sempre fora um excluído contudo, tivera a dignidade de dizer essas palavras a uma advogada rica, uma autoridade!

É que na sua inocência matuta, no seu juízo nordestinado e castanho, a ajuda ao próximo na hora do aperreio está implícita, não se faz isso por dinheiro ou agrado! Não era ofensa receber uma importância caso fosse isso o combinado. Ofensa era aquela desimportância que a moça lhe concedera quando avistou o posto e resolveu-se sozinha. Isso sim. E não era ofendido que ele estava. Estava era triste mesmo. De uma trsteza sem remédio, sem cura, sem alívio de nada. Tristeza parida pela injusta depreciação de sua pessoa. Ele podia ser ex tudo, mas ex gente? Ôxe! Não!

E assim, fadados à ditadura dos preconceitos que os levara até ali, voltaram a ser o que sempre foram – advogada rica e ambulante pobre - protagonistas de um romanceiro nordestino que se miraram uma única e derradeira vez.

Naquela manhã clara de sexta-feira de setembro, morrera mais do que um sentimento nobre entre um ambulante e uma advogada. Morreram duas metades diversas de um Anjo: metade por dentro e metade por fora. Por fora, porque todo mundo viu e constatou como acabara rápido seu flerte, ensaio de namoro com aquela bela e bem sucedida advogada galega.

Por dentro, porque ficara sentido com a vida! Sentido de uma dor estranha. Não era fome, nem desamparo, não era doença, nem era calor demais. Era uma dor de maior agudeza. Era uma dor no espírito que mora gêmeo da alma. O espírito dele adoecera pelo descaso da moça. E não foi pelo descaso por ele ser ex-dono de terra, ora ambulante e ex-militar. Foi o descaso na sua qualidade maior que é a de ser gente! Ele podia ser um excluído, ex qualquer outra coisa, menos ex-gente. E o fato dela ter lhe tratado menos que isso, doeu. E continuaria doendo... Ferida aberta que jamais fecharia.

Na verdade o que morrera, entre o Varejão Kennedy e o Forró Chique na Abdias de Carvalho em Recife, um endereço como outros tantos no mundo, foi uma coisa que sempre nasce ingênua e forte: a esperança...! A possibilidade de encontro entre duas pessoas representantes de dois Brasis opostos! Um, bem sucedido, estudado – clara estampa do Brasil rico e oficial; outro, ambulante, moreno e desafortunado – lapidação crua do Brasil escuro, pobre e real.

Machado de Assis vivenciou, na prática, a existência desses Brasis diversos - o oficial e o outro, o real - nasceu na pobreza e, pelas letras, galgou espaços políticos e representativos, repassando sua experiência ao eloqüente e não menos brilhante Mestre Suassuna, pernambucano de afeição. A tese defendida pelos dois, a dos dois países contidos num mesmo continente, incomoda e dói em muita gente. Mais por ser de todo verdadeira do que por ser, apenas, medonha e triste.

Vivemos sim, sob o jugo do Brasil oficial, do qual fazem parte os abastados e seus direitos: direito à riqueza, à alegria, à formatura e até ao ócio. O outro, é o Brasil real: feito pelos que nada têm ou possuem, muito menos direito: Brasil dos que andam a pé léguas para “despiorar a sorte”; dos que migram para as capitais fugindo da derrota da seca do interior; dos que se vêem limitados pela falta de estudo a vender tudo por qualquer; dos que, feito o ambulante Emerson Flávio, pelejam contra a falta de chuva ou de sorte e que, irresignados, se põem ativos e falantes como esse Anjo.

A tradução disto está na luta e na indignação contra a ditadura do preconceito, da civilização urbanóide, que escraviza e transforma gente de bem em escória, experiência em exclusão, exemplo em esbórnia. A luta contra tudo que entorna gente decente em retirante social. Pode ser que as dimensões dos mundos das pessoas que habitem esses brasis sejam opostas. Mas não são irreconciliáveis! Num mundo feito por pessoas, onde estiver o fator humano, alguma alma haverá! E onde houver uma alma, haverá sempre um sentimento. E onde houver sentimento, haverá a chama da possibilidade e o perigo do contágio com a Verdade que une, que integra, que soma e que nos humaniza!

E é provável que essa Verdade vença os preconceitos. É possível que haja salvação para uma afeição como a do ambulante Emerson Flávio e da advogada Eliane Jardim. O mundo deles é o mesmo, só que ao contrário... Todavia, já existe um quê de esperança no ar. O mundo gira, a vida voa, o tempo dispara. Já há sinais de alerta. Ainda que no trânsito...

 
 

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