SERVIÇO PORCO
Raymundo Silveira
 
 

Sonhava. Ferido numa batalha, um obus lhe atingira, em cheio, o ventre. Havia duas diferenças quanto à realidade: O projétil perpassava-lhe lentamente as entranhas. E, ao invés de penetrar, saía. Não era um sonho; era meio sonho. Não houve batalha, nem obus. Mas, ao despertar, percebeu que a metade dos intestinos se encontrava do lado de fora.

Quando criança, gostava de ver a cozinheira sacrificar e eviscerar as aves. Essa segunda etapa do processo lhe era especialmente fascinante. Mais tarde, quando foi estudante de medicina, permutava com colegas uma vaga na sala de operações por um ingresso no anfiteatro de autópsias. Como colegiais, negociando as partes mais interessantes do lanche. Sentia-se realizado, quando o professor o entregava o escapelo e, antes o presenteava do que ordenava: "Faça!" E ele fazia, com enorme prazer.

Na presença de um corpo em decomposição, enxergava poesia. E se sentia diante de uma obra de arte. Uma tela de Rembrandt. Uma escultura de Rodin. Um poema de Petrarca. E exercia aquela tarefa com reverência, respeito e devoção. Como um sacerdote virtuoso a celebrar o ato mais solene de sua religião. Primeiro, se ajoelhava. Depois, persignava-se e se benzia. As sobras da morte, quanto mais deterioradas, mais respeito lhe infundiam.

Naquele defunto, a barriga há muito tempo já tinha estourado e as tripas luziam e estufavam pra cima. Para ele, tratava-se de coloridos enfeites natalinos. As moscas-varejeiras eram suas convidadas de honra. E enxameavam como abelhas numa colméia. A inchação era tamanha que não havia mais forma de gente. Mas se sentia como o Miguel Ângelo se preparando para esculpir o Cristo da "Pietá". De cada orifício escorriam torrentes de líquidos de variadas tonalidades. Os de cores mais escuras, lembravam-lhe o castanho das telas de Münch. Os amarelos ocres, que para outras pessoas passavam por gemas de milhares de ovos podres, pareciam-lhe tintas prestes a ser usadas por Van Gogh para criar os seus girassóis. Os humores fétidos e purulentos, verde-musgo e verde-negro como a bile da atrabílis, lembravam-lhe as águas e a vegetação semiliquefeita do riacho "La Grenouillère", a cujas margens Monet pintou a sua belíssima tela.

Portanto, sempre fora o sujeito. Agora era o objeto. Só que estava vivo. Dois dias antes, entremeados por noite e meia sem dormir, tinha sido operado de um aneurisma da aorta. A barriga fora cortada num altabaixo que começava na ponta da espinhela e ia até o púbis. A cavidade foi aberta. Mal a artéria foi tocada, o segmento dilatado se rompeu. Foram quatro xeringadas fortes. A primeira atingiu o teto, quatro metros acima. A segunda foi uma ducha morna na cara do doutor que estava operando. A terceira subiu até a altura do peito do primeiro auxiliar, que desviou a cabeça. A quarta ainda ameaçou acompanhar, mas arriou como uma cobra preparada para o bote e acaba levando uma paulada. Ainda assim, era muito sangue. Não dava pra ver nada, a não ser aquele mar vermelho. Duas dúzias de toalhas encharcadas. Quanto mais enxugavam, mais ajuntava. Parecia uma torneira estrompada. Para abreviar, foram seis horas e quarenta e cinco minutos cravados de "tourada", desde o primeiro talho até o último ponto.

Não sabia de nada. Salvo que estava salvo. Fora de perigo. Quando acordou e viu as tripas saindo pelo buraco da operação, ainda achava que estaria sonhando. E que agora o seu corpo era um cadáver pronto para ele mesmo transformar em miúdos. Completou o desmanche do trabalho dos médicos e o da prensa abdominal, rasgando o que ainda estava cosido e expondo o que restava de intestinos. Envolveu tudo com o lençol e girou várias vezes pelo tronco. Depois, susteve e tracionou pra cima, o pedúnculo, com a mão esquerda. Esticou a direita até encontrar a gaveta do criado mudo, onde guardava os apetrechos de barbear. Tateou, e acabou encontrando a navalha. Abriu, e se preparou para cortar de um só golpe...

05/07/2005

 
 

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