FERIDA ABERTA
Rutinaldo Miranda B. Junior
 

Renata encostou no umbral da porta.Seu corpo sentia um cansaço que ela não conseguia explicar.Quem sabe,não fosse cansaço do corpo.Talvez fosse da alma.Nos últimos dias,uma tristeza lhe acompanhava.A casa parecia vazia.Desolada como Célia,sua companheira.Renata cruzou os braços.Ficou observando Célia jogada no sofá.Tragando um cigarro, pensativa.

-E aí,você vai?-perguntou Renata.

Célia olhou com angústia.

-Não sei.Quero ir,mas não sei se vou.

-Sua mãe telefonou.Disse que,se você for,tem que ir hoje.

-Hoje!-havia apreensão na voz de Célia-ele tá tão mal assim?!

Renata também queria um cigarro.Um pouco de nicotina pra relaxar.Pra conseguir dizer toda a verdade.Mas deixara de tragar,fazia dois meses.

-O médico falou que...-sentia,ao pronunciar,o peso de cada palavra.

-Quê?

- Ahf!...que ...que não dura até amanhã!

Célia ficou em silêncio.Fitando num ponto qualquer no chão.

-Mas-Renata reforçou a voz-sua mãe disse que vai entender se você não for.

-Eu quero ir-respondeu Célia sem tanta convicção.

-Então,tá.A que horas a gente vai?

-Deixa eu ver...às...

-Às duas começa o horário de visita.

-Muito cedo.Quando termina?

-Acho que às cinco.

-Então a gente vai às quatro,certo?

Não,às quatro Renata não concordava.Era muito tarde.Até o hospital,gastariam vinte minutos.Com o trânsito movimentado,meia hora.A outra meia hora era nada. Pouquíssimo tempo para um definitivo adeus.Da filha que não falava com o pai,havia dez anos.

-Às três não é melhor?

-Não,às quatro-Célia retrucou decidida.

-Tudo bem.

Renata receou insistir mais.Poderia contrariar a companheira.Célia em momentos de tensão,tinha o pavio curto.E aquele era um momento difícil.Sinceramente,Renata estava até surpresa.No fundo,acreditava que Célia não iria mesmo.Agora,vá que ela se irritasse com a insistência e mudasse de idéia!

-Ele perguntou por mim dessa vez?

Nenhuma palavra foi a melhor resposta que Renata encontrou.Mas,Célia não entendeu.Ou não quis entender.

-Perguntou?-repetiu com raiva.

-Não!

Passou a segurar o cigarro com a mão trêmula.Pela primeira vez,Renata viu algumas lágrimas deslizarem naquela face.Que escondia sua dor num choro silencioso.

Célia fechou o semblante-Nem na morte ele me procura!

-Você tem que tentar compreender.

-Compreender o quê?!

-Sua mãe disse que ele está sofrendo muito.Mesmo tomando morfina.

-E dái?

Renata perdeu a cabeça.

-E daí o quê?Porra,ele é seu pai!Tá numa cama morrendo de câncer e você pergunta "e daí"!Você tá sendo muito orgulhosa,sabia?

-Eu orgulhosa!

-Sim,você.

-Pra você é fácil dizer isso.Não foi você quem ele botou pra fora de casa aos dezesseis anos.

-Esquece isso.É passado.

-Passado uma ova!Sabe a última coisa que ele me falou?

-Você já me disse.

-Pois vou repetir: "sua sapatão descarada!Pra mim,você tá morta!".

-Mas é passado.

-Não,não é.Ele nunca me ligou.Nunca mais quis falar comigo. Pra ele estou morta,entende?Mor-ta!

-Escuta uma coisa.Você tem que ir falar com ele.

-Mas ele não quer falar comigo.

-Tem que tentar.

-E se me chamar de sapatão descarada na frente de todo mundo?

-Não vai fazer isso.

-Não vai?Como sabe que não vai?Ele você não conhece.

-O seu pai?

-Sim,ele.

-Perguntei sobre seu pai.Não sobre "ele".

-Ele não é mais meu...

-Seu o quê?

-...

-Não consegue chamá-lo de pai,né?

Célia sentiu uma angústia maior.

-Porque você tá fazendo isso comigo?

-Olha pra mim.O que ele não é mais seu?

-Não vou dizer.Nunca mais vou chamá-lo de ...

Deixou de ser uma fortaleza.Pôs as mãos no rosto e começou a chorar compulsivamente.Renata sentou ao seu lado.

-Você tem que esquecer.Tem que perdoar.

Célia abraçou a companheira-Eu não consigo!

-Consegue.Pra começar,me responde.

-...

-Vai,diz.

-Sim,ele é meu pai!

-Tá vendo?Você consegue perdoar.

-Mas,que vou falar pra ele?

-Isso não importa.Na hora,vai saber.

Sentiu-se mais leve-Então,às quatro a gente vai.

-Certo.Chegando lá,fico na recepção.

-Não,você vai entrar no quarto comigo.

-Não é uma boa idéia.

-Ora,ele nunca te viu.Digo que é apenas uma amiga.

-Fala sério!Se entrar comigo,ele vai sacar na hora.

-E daí?Ele que me aceite como eu sou.

-Tá sendo orgulhosa novamente.Vai se despedir do seu pai ou esfregar na cara dele que é uma lésbica?

-Tá,tá,você ganhou.Fica na recepção.

Às quatro horas saíram.Renata dirigia aliviada por encontrar um trânsito calmo.Célia seguia muda,o cotovelo apoiado na porta,a cabeça debruçada sobre a mão.Chegaram ao hospital.Uma atendente,apontava pra algumas escadas.Dizia a localização das enfermarias e apartamentos.Célia se aproxi-mou.

-Por favor qual é o apartamento do senhor Adalberto Alves?

A enfermeira consultou a lista.Dirigiu um olhar desconcertado.

-Pela segunda escada,primeiro andar.É o cento e um.

Renata caminhou para uma fila de cadeiras.

-Vem cá-disse Célia.

-Que é?

-Me faz um favor.Vem comigo.

-Mas...

-Por favor,não quero ir só.Você não precisa entrar no quarto.Fica do lado de fora,no corredor.

Renata sentiu amor e pena.

-Tudo bem.

Subiram as escadas.A porta do cento e um estava entreaberta.Ouviram choros.Renata encostou na parede,Célia abriu a porta.

-Morto,minha filha!Morto!

Renata ficou ouvindo os lamentos no vasto corredor.Ao seu lado,enfermeiros passavam indiferentes,de tão acostumados com a morte diária.Célia abraçou a mãe.Olhou o pai com alívio.Agora,conseguiria ficar com ele,frente a frente,tranqüila,sem dizer uma só palavra.

 
 

fale com o autor