CINDERELO
(ou HAVAIANAS 44)
Ubirajara Varela
 
 

A maior obsessão de um homem nem sempre é uma mulher. No caso de Arnaldo, isso era evidente. O motivo de sua insanidade, de seus desatinos, de sua insensatez, era nada menos do que um par de chinelas do tipo havaianas, número 44. Era o seu ícone, sua característica, seu elogio ao prazer, ao conforto, à descontração.

E muitas pessoas achavam que Arnaldo era realmente doido por causa disso. Afinal, ele rendia uma verdadeira adoração ao chinelo, que não deformara, não soltara as tiras, não obtivera cheiro em mais de 12 anos de uso ininterrupto.

Até a sua mãe sentia uma grande preocupação. Afinal, um filho que aos 36 anos de idade ainda não conseguiu arranjar uma namorada boa pra casar e só se interessava pelo bem-estar de seu calçado, isso realmente causaria preocupação em qualquer mãe, até nas mais desnaturadas.

Mas Arnaldo não se importava com a opinião alheia. Era seguro. A única coisa que realmente lhe interessava era o seu venerado par de chinelos de borracha um pouco amarelados pela força do tempo e do uso. "Mas ainda em forma", como ele gostava de dizer.

Toda tarde, quando chegava do trabalho, ele gostava de marcar ponto na praia do sururu, tomando uma cerveja gelada, ou comendo um caldo de mariscos, observando as vagas, os populares e, claro, com os pés confortavelmente calçados nas chinelas. Nada era mais prazeroso do que isso. Ainda mais que ele se gabava ao constatar que não havia pés que por ali andassem tão bem calçados quanto os seus.

Numa tarde de quarta-feira de intenso calor, Arnaldo resolvera abandonar por alguns instantes o seu objeto de veneração para dar um mergulho. Quando voltou, o fatídico incidente: roubaram as havaianas.

Ouviu-se um grito de dor que percorreu toda a orla. A polícia foi acionada, os bombeiros, o resgate, a imprensa, todos pensaram se tratar de um assassinato, um arrastão, um infortúnio qualquer muito grave. Mas não, era Arnaldo que, boquiaberto, lançou um grito de terror aos ventos marítimos, e em seguida entrou em estado de choque.

Com muita sorte, um popular que passava identificou Arnaldo, que foi conduzido para casa pelo Corpo de Bombeiros.

Depois daquele dia de infortúnio, o jovem rapaz entrou em depressão profunda. Seu maior bem lhe fora arrancado. Era como se seu âmago não existisse mais. Como se tivessem tirado o filho de uma mãe, ou o pirulito de uma criança. Causava pena a dor de um homem naquele estado.

A mãe tentou fazer de tudo. Acionou amigos, os colegas de trabalho, chegou a comprar um novo par de chinelos, também tipo havaianas, mesmo tom, mas novo modelo. Arnaldo não reagiu. Ele queria o seu. O legítimo!

Aos poucos Arnaldo foi se recuperando, mas sempre mantendo a amargura no coração. Nunca mais fora o mesmo depois daquele dia de calor intenso em que resolvera se banhar nas águas de Iemanjá. A alegria de viver, o conforto, a descontração, o prazer, nada fora resgatado em sua vida, agora insossa.

Arnaldo voltou com o tempo a caminhar pela orla, mas já não parava na sua barraca preferida; já não tomava a sua cerveja gelada; já não comia seus tira-gostos; já não apreciava as vagas e as mulheres bonitas de maiô. Agora calçava sapatos e meias. Em plena areia branca, aquele homem destoava com sua triste figura amparada por mocassins brancos e meias pretas. (Que tristeza!).

Até que um dia, o destino lhe pregou uma peça, fazendo com que ele cruzasse com Stela, que também andava solitária, mas por razão diferente. Ela tinha um par de chinelos tipo havaianas, tamanho 36, mas não tinha um amor. Por isso seu coração estava vazio, amargurado, dolorido.

O sonho de Stela era ter um marido. Exatamente como o que ela sempre sonhara, desde criança, alguém que coubesse em seu coração, que a preenchesse, alguém que calçasse seu sonho. E quando Stela viu Arnaldo passando, meio moribundo, entristecido, assolado pelo evidente vazio no peito, pensou, - Por que não? Arriscou-se, aproximou-se, investiu. Não teve muito sucesso. Talvez seu papo não estivesse agradando Por fim tentou ser mais direta e ousada, perguntando ao jovem e inconsolável rapaz o que lhe afligia tanto.

Arnaldo contou-lhe a triste história de seu chinelo, de como o fora extirpado de sua vida tão abruptamente. Emocionada, mas cheia de malevolência, Stela marcou um novo encontro para o dia seguinte. Ela estava confiante. Já Arnaldo, não. Nada o estimulava, nem uma paquera em potencial. Mas concordou. Já era um desafortunado mesmo, então ele também pensou - Por que não?

No dia seguinte, eles se encontraram. E Stela, com um sorriso estampado na face, disse-lhe que tinha um presente. Arnaldo deu um sorriso amarelo, como se não se importasse muito, pois não queria ser mal-educado. Sua mãe lhe ensinara como as mulheres gostavam de ser bem tratadas. Mandou que fechasse os olhos, contasse até três, e tornasse a abri-los.

Um, dois, três.

Os olhos de Arnaldo se acenderam como dois balões em festa de São João. Nas mãos de Stela estavam os chinelos surrupiados. Era mesmo um par de sandálias tipo havaianas, número quarenta e quatro, exatamente como ele havia guardado na memória. Ela disse: É você o meu príncipe encantado, meu cinderelo. Um dia eu vinha caminhando pela orla e encontrei este chinelo sozinho. Era minha grande oportunidade de encontrar meu príncipe. Passei então a procurar o dono. Agora finalmente o encontrei: você.

Arnaldo se desabou em pranto, os dois se abraçaram, ali nasceu um novo amor.

Depois desse dia, sempre se podia ver Arnaldo e Stela caminhando pela praia do sururu, felizes, descontraídos, prazerosos, confortáveis, com o coração preenchido, e calçando os seus chinelos.

Eu não canso de repetir esta história. Muitos me perguntam: E daí? Daí que eu digo que é uma história boba, sem grandes pretensões, um conto da carochinha. Serve apenas para mostrar que nunca se deve perder as esperanças, porque por um pé cansado sempre vai existir um chinelinho velho esperando.

 
 

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