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FOLHAS DE CERA
uma história de amor, sexo, ciúme e traição
 
 
Beraldo era poeta bissexto.

Alto, magro e desengonçado, por causa dos braços extremamente longos, seu perfil lembrava um arco cabeçudo. Por isso o apelido de Berimbau. Os pés e mãos enormes sugeriam vantagens num embate físico, o que não estimulava maiores gracejos dos colegas de classe. Ledo engano, o poeta raramente sorria no entanto era meigo como uma criança. Se ele sabia que tinha apelido de Berimbau escondia, mas seu segredo era o amor pela Ritinha.

Moça de formas arredondadas e cheias como uma pintura de Boticceli, tinha cabelos cor de fogo, a boca carnuda, gengiva grande, dentes pequenos e algumas sardas contrastando com a pele claríssima. A ela eram dedicados os versos raros que cantavam amores impossíveis.

De bissexto para voraz não precisou mais que a convivência de ambos durante o ensino médio. Ao adentrarem o superior, os versos saltavam em qualquer pedaço de papel disponível e se transformava imediatamente em mais um segredo.

Nos poemas que traziam a tona seu sentimento mais profundo, Beraldo jamais ousou nominar a musa. Cantada em seus sonetos, Ritinha era causa e efeito, silêncio e berro, luz e treva, porém, desconhecia tais odes. Por testemunhas dessa devoção o poeta tinha o tampo da escrivaninha e o aconchego da gaveta, até que num rompante de loucura os escritos foram deixados, como se fosse um livro de receitas, no colo da moça.

Beraldo presenteou a amada com todas suas poesias, sonetos e odes. Na primeira página do volume encadernado mandou um bilhete: "A Rita o que é de Rita".

O primeiro beijo demorou mais dois meses para acontecer, foi uma teimosia de Ritinha.

Após saber da paixão que consumia papeis, lápis e noites do poeta ela se encantou e cismou em retribuir. O namoro começou em outubro, mas pela timidez de ambos, o beijo só aconteceu em novembro. Bastou. Na formatura já estavam de casamento marcado.

- Com esse fedelho minha filha não casa!

Era Seu Antonio quem gritava, pai de Rita, Pedro e João. Ah, pobre menina, filha única de pai mulherengo, e com dois irmãos criados para serem machos.

- Pai, a gente se ama.

- Que nada, filha minha com poeta? Coisa de vagabundo. Ele que vá trabalhar. Sempre desconfiei desses homens que se pegam nas letras, livros e cadernos. Querem é boa vida. E tem mais: corre por aí, que o Berimbau já aprontou com moça donzela. Com poesias, fala mole e lábia. Tem cara de tonto, mas é esperto como o diabo. Não, não, não. Não casa e pronto.

Na verdade, Seu Antonio não admitiria jamais que sua única filha se casasse com aquele rapaz esquisito. Ela fora criada para mais, muito mais. Pior que o apelido - Berimbau - era o nome de batismo do Beraldo. Por isso ele fazia sempre questão de ser chamado pelo sobrenome. Seu nome lhe causara muitos aborrecimentos e frustrações. Quem gostaria de um menino chamado Gedásio?

Era uma dor para aquele garoto de olhar puro, ter um nome tão feio. Isso só fazia diminuir ainda mais sua auto-estima. Mas pela Ritinha, Gedásio Beraldo ou Berimbau, estava disposto a tudo. Carregando cadernos e canetas, foi, a passos largos, com seu andar desengonçado, procurar o temível Seu Antonio. Mal sabia o que o esperava...

CLAP CLAP CLAP

Seu Antonio olhou pelo vidro aberto na sala. Era o namorado de Ritinha.

Abriu a porta, avançou em direção ao portão. Empinou a cabeça e coçou o saco para mostrar autoridade.

- Entre. Estava mesmo precisando falar com você rapaz - Disse seu Antonio, conduzindo o Beraldo para dentro da casa.

Até aquele dia, o namorado de Ritinha nunca havia tido uma conversa de homem para homem com o futuro sogro.

- Como está o senhor? - Pergunta com educação o Beraldo.

- Mais ou menos, uma dor de cabeça me atordoa desde cedo. - Responde o seu Antonio - Quando estou assim fico com os nervos à flor da pele.

- Não será uma pequena ressaca? Afinal hoje é sábado e o senhor costuma freqüentar o "Hot Night" às sextas-feiras não é?

Beraldo soltou a frase com altivez e já prevendo o xeque-mate logo no início do duelo, afinal, ninguém sabia das noitadas do macho alfa da casa lá naquele antro de perdição, como dona Marilda - mãe de Ritinha - chamava a tal boate. É claro que Beraldo pesquisou a vida do seu Antonio antes de bater palmas na casa de sua amada, naquela manhã de sábado.

"Hot Night" era uma boate localizada bem na parte central da pequena cidade vizinha. Um sobrado antigo com uma pintura escura, desenhada com tinta spray em tons vermelho, roxo e amarelo. A grande placa negra da entrada mostrava o desenho de uma mulher deitada, nua, uma das mãos sob a cabeça, a outra levada a boca, com o dedo indicador sendo mordido. Ela estava um pouco de lado, tinha uma das pernas dobradas e dizia o seguinte: "VENHA PARA HOT NIGHT - AQUEÇA SUA NOITE COM MULHERES SUPER QUENTES".

Seu Antonio sentiu todo o sangue do corpo lhe subir a cabeça, enrubesceu imediatamente, pediu licença e correu até a cozinha para tomar um copo d'água e tentar fazer sua respiração voltar ao normal.

Lembrou imediatamente da noite anterior, sua dança com Lúcia, os momentos de amor que tiveram. Não queria nem imaginar se Marilda soubesse de uma coisa dessas.

Ele conseguira esconder suas escapadas durante tanto tempo, dizia que às sextas- feiras era voluntário na Santa Casa da cidade vizinha. Passava quase toda a noite cuidando, conversando com os doentes e ajudando os enfermeiros a administrarem os remédios.

O que seria dele se Marilda soubesse? Mulher brava, de origem nordestina, não era fácil de enrolar, sentava a mão em qualquer um que não tratasse com respeito a ela ou qualquer um dos seus filhos. Chegou a espancar o vizinho Waldir - rapaz musculoso e forte- somente porque chamou sua filha de linda.

Caráter, forte, bonita, vinha de uma linda mistura de raças, pai canadense e mãe descendente de alemães, mas o comportamento ela aprendeu com os parentes no nordeste, onde foi criada até se casar. Gostou de Beraldo desde o primeiro dia justamente pelo modo romântico como ele se dirigia a Ritinha. Comentava com todos:

- Isso sim é homem bom para minha filha.

Dizia sempre que os dois teriam um lindo futuro, pois, formados em jornalismo, iriam trabalhar juntos como aquele casal da televisão.

Seu Antonio voltou então a sala:

- Pois então meu querido rapaz, Ritinha disse que vocês querem se casar?

- Sim seu Antonio, mas, parece que o senhor não concorda muito com isso?

- Realmente meu rapaz! Não concordo porque quero assumir todas as despesas do casamento e da festa.

- Se o senhor faz tanta questão, assim será!

E os dois trocaram um aperto de mão. Aparentemente tudo estaria resolvido não fosse o gênio forte de seu Antonio que não engoliu facilmente a ameaça e os fatos que se seguiram.

Quando Beraldo foi embora, depois dos abraços e sorrisos escancarados que ganhou de Ritinha e de D. Marilda, seu Antonio apressou-se em sair de casa. Sua ausência nem foi percebida porque mãe e filha já começavam a fazer planos para o enxoval, casamento etc.

Antonio não sabia que rumo tomar. Sua cabeça fervilhava, pois nunca estivera em tamanha sinuca de bico. Pensou que Lúcia, sua companheira preferida das noitadas de sexta, pudesse ajudá-lo. Algo ela deveria saber sobre seu futuro genro, pois conhecia bem todos os homens das redondezas. Não poderia esperar até a outra semana e, apesar de estar arriscando o pescoço, tomou a estrada e foi até o HOT NIGHT.

A casa ainda estava fechada. Certificou-se que ninguém o espreitava e bateu a campainha. Esta atitude o deixou um tanto confuso, pois sempre que chegara a porta estava aberta. Não havia percebido que aquela casa tinha campainha.

Foi Neide que atendeu. Sua fama era de menina esperta que só prestava favor com pagamento adiantado. Mediante alguns trocados ela deixou que ele entrasse. É claro que Antonio percebeu seu olhar malicioso quando disse que queria "falar" com Lúcia.

Sua confusão agravou-se quando viu Lúcia sem maquiagem. Ela era bonita e comum. Chegava até a ter um rosto suave, muito diferente do que ele estava acostumado a ver nas noites que se encontravam.

- Que faz aqui nesta hora? Ontem foi pouco?

- De jeito nenhum, mas te vendo assim sei que ainda tenho bala no cartucho, mas o que me trouxe aqui foi trocar algumas idéias com você.

- Trocar idéia? Vamos até o bar, então. Já terminamos a faxina e poderemos trocar idéia sem que ninguém perturbe a gente.

Seu Antonio se surpreendia a cada instante. Não imagina que a vida naquela casa, durante o dia, fosse igual a qualquer outro lugar.

- Diga lá o que o aflige, homem?

Contou a ela o que se passava e ao pronunciar o nome de Beraldo, Lúcia exclamou:

- Sua filha será muito feliz! Tirou a sorte grande! Beraldo é homem bom demais!

Ao escutar aquilo Antonio teve a certeza que fez bem em ir lá. Descobriu que o mancebo tinha podres.

- Ele vem aqui? Então não presta para casar com Ritinha. Imagine só minha filha casada com pessoa que freqüenta essa casa?

- Alto lá, Antonio. Esqueceu que você é casado e sempre vem aqui? Além do mais, Beraldo é moço diferente. Não se achega pra aconchego, mas para ajudar.

- Ajudar como?

Antes de completar seus pensamentos maldosos foi interrompido pelas explicações de Lúcia:

- Beraldo vem aqui, fora do expediente, para ensinar a gente. Lembra, naquela noite que você negou fogo?

Antonio jamais ia esquecer aquilo. Nunca tinha acontecido antes, mas lembrou que conseguiu, depois...

- Pois é, Antonio. Você só se "animou" depois que destrinchei palavras quentes e lembro muito bem que você disse que aquelas palavras te animaram. É tudo escrito por Beraldo. É pra isso que ele vem aqui. A gente aprende com ele a falar coisas que animam os fregueses.

Antonio sentiu que o mundo se abria embaixo dos pés. Imaginar que foi por causa de Beraldo que se safou do maior constrangimento de sua vida, era humilhação demais. Perdeu o rumo e nem sabe como saiu da casa. Só se deu conta quando escutou a buzina estridente de um caminhão à sua frente, na estrada.

Por pouco não foi daquela vida para outra e até chegou a imaginar que seria melhor. Era degradante demais admitir que tinha se animado com as palavras de Beraldo para poder dar conta do recado com Lúcia. O que poderia fazer pra derrubar o famigerado? Alguma coisa teria que existir para afastá-lo de sua filha. Não poderia viver na mesma família com alguém que salvara sua reputação na intimidade. Teria que encontrar uma saída. Sentia-se humilhado, constrangido e sua raiva por Beraldo aumentava a cada segundo.

Em sua estreita cama, Beraldo custava a dormir. Por dentro era só riso, por fora era só rolar e rolar de um lado pra outro, do outro pra um de novo. Era nítida a sua felicidade. "De casamento marcado", dizia para si mesmo. E ficava pensando em tudo o que aquilo representava a ele, era praticamente a sacramentação de seus sonhos.

Também não deixava de esconder o alívio. Dar um xeque-mate no sogro ranzinza, assim, numa só jogada, fora mesmo um golpe de mestre. "O velho deve estar imóvel até agora", sorria. E ficava se perdendo em pensamentos, imaginando como a sua defunta mãezinha Maria Silvia ficaria orgulhosa do menino: formado e prestes a construir sua família.

"Mas o caminho não foi fácil, bem dizia a minha avó que 'rapadura é doce mas não é mole'", pensava Beraldo, já desistindo de dormir e se entregando de vez aos pensamentos de claranoite.

Além da difícil conquista do coração de Ritinha, que levou anos e anos de segredos e poemas-mudos, teve também a luta pelo diploma. Órfão aos 14 anos - Maria Silvia e Seu Agenor morreram num horrível acidente de carro-, desde cedo Beraldo teve de se virar para conseguir viver. E o acaso contribuiu para o sucesso de seu empreendimento digno, embora bastante imoral: ele era ghost-writer de prostitutas!

Tudo começou quando Beraldo descobriu a coleção completa de Carlos Zéfiro num baú da casa de sua avó. Todos os gibis tinham, na capa, a assinatura de seu tio. O menino pensou: "safadão, o tio Zezé!". Mas, em seguida, pensou de novo: "achado não é roubado!". E deu um jeito de, escondido, levar todo aquele tesouro da sacanagem para sua casa.

Assim, mesmo virgem, aprendeu tudo com o mestre do catecismo. E tornou-se um verdadeiro expert na arte. Só que aquilo tudo foi lhe deixando com vontade de experimentar, na prática, o que em teoria já lhe era bem claro. Mas e a coragem? E a coragem? Beraldo tremia que nem um berimbau, digo, que nem vara verde, só de pensar na situação.

Um dia pegou um ônibus e foi pra cidade vizinha. Queria conhecer o "Hot Night", cuja fama era grande na região. Seria sua primeira vez, ele se tornaria um Homem, com agá digno de ser impronunciável.

Quem o atendeu foi Vanúsia, uma experiente profissional. Tão experiente que foi muito compreensiva quando Beraldo não conseguiu consumar o ato, por puro nervosismo. Tão experiente que aceitou passar a noite toda só conversando com o jovem poeta, que mostrou um vasto conhecimento de sacanagens. Tão experiente que concluiu: "este talento não pode ser desperdiçado". E, a partir daquela noite, Beraldo tinha um emprego. Continuou virgem, mas tinha um emprego: era ele quem escreveria os roteiros perfeitos para que as putas soubessem o que dizer em todas as horas. Era ele quem contribuiria para a felicidade carnal de todos os freqüentadores do "Hot Night". Era ele: Gedásio Beraldo.

O relógio marcava 3:40, a última vez que o olhara. Levantou-se, foi até a cozinha. Na geladeira apanhou uma maça e, descalço, cruzou a casa no escuro, abrindo a porta da frente sentindo o frescor da madrugada. Espichou-se na rede da varanda mordiscando a maça e foi abatido por um sono pesado. Não viu quando a cidade lentamente despertou, nem a luz do sol o trouxe de volta.

Despertou com o toque do telefone, e por um segundo não se deu conta do motivo de ter dormido ali fora. Num salto correu até a sala, e antes que desligassem conseguiu dizer alô. Do outro lado da linha, escutou uma voz conhecida:

- Beraldo estava dormindo?

- Não, quem é ? Pedro?

- É cara, tudo bem?

- Tudo. Aconteceu alguma coisa com Ritinha??

- Não, não, é o pai, pediu que ligasse e combinasse com você na hora do almoço lá na fábrica.

- Tudo bem - respondeu Beraldo, surpreso, perguntando se entre meio dia, meio dia e meia estava bom.

- Fechado - respondeu Pedro - confirmo com ele. Um abraço, despediu-se.

- Outro, até mais tarde.

Agora essa! Que diabos estava Seu Antonio querendo com ele?

Do outro lado da Cidade, Pedro desligou o telefone, instalado na saleta próxima da sala. Entrou na cozinha e falou apenas:

- Está marcado pai?

João olhou Seu Antonio por cima da fumaça do café, que levava à boca. Reparou o cenho franzido, as olheiras pesadas. O velho não estava bem, desde que começou essa estória do casamento da irmã. Todos os dias religiosamente às sete horas tomavam café os três e seguiam juntos para a fábrica. Essa rotina acontecia desde os seus 16 anos. Hoje, quando desceu, encontrou-o conversando com Pedro. Fosse lá o que fosse, calaram-se com sua chegada, e o irmão foi telefonar para Berimbau.

Comeram em silêncio, já que as conversas eram guardadas para o jantar. Dona Marilda só levantava as oito horas para cuidar do dia a dia da casa, e à noite, religiosamente, a família se reunia às dezenove horas, exigência dela.

João simpatizava com o futuro cunhado e imaginou com seus botões como seriam os jantares, a partir de sexta-feira, dia em que, diante de um prato caprichado e um vinho especialmente reservado para a data, o cunhado seria oficialmente recebido em casa, e intimado para jantar ali todos os dias, mesmo depois do casamento. Isto ele ouvira a mãe dizer a Ritinha. Não compreendia porque o pai cismara com Berimbau, sujeito pacato, esforçado, que sempre gostara da irmã. Pedro passava manteiga no pão quando o pai levantou-se, olhou o relógio na parede e avisou que ia esquentar o carro, que não demorassem, o que significava que tinham mais cinco minutos.

João saiu da mesa e, como o tempo não estava muito firme, foi até o quarto apanhar um suéter. Ao entrar na sala, ouviu o motor do carro ligado, e não pôde deixar de se assustar quando viu o pai apanhar na gaveta do móvel, próximo do guarda louça, o velho 765 que pertencera ao avô. Precisava avisar a Beraldo que ele corria perigo.

Não fosse a pele rosada e o cabelo de fogo, como a irmã, João seria apelidado facilmente por Bezourinho, pois era baixinho e redondo. Parecia uma bola a rolar. Recebera dos colegas de prosa de rua o apelido de Ferrugem. Não poderia telefonar àquela hora, tampouco atravessar a cidade correndo, afinal imprimiria maior velocidade rolando calçadas afora. Era tarde para avisar Berimbau, provavelmente já teria saído de casa. Sua única chance seria algum contratempo no caminho da fábrica. Agiu normalmente evitando qualquer suspeita que revelasse sua intenção. Manteve-se calado e pensante. Então, começou a traçar o caminho possível de Berimbau, onde, em algum ponto, poderia cruzar com o itinerário de seu pai.

Era preciso uma coincidência de tempo. Berimbau era caminhante, talvez buscasse suas inspirações no balanço dos passos, mas era de conhecimento de todos que os passos largos do poeta esguio percorriam quase toda a cidade como um perdido do destino.

João arquitetou seu plano antes que o carro dobrasse meia dúzia de esquinas. Precisava atrasar a viagem o bastante para que Berimbau chegasse até a avenida Ptolomeu Valente que era o último trajeto a vencer até a fábrica.

O apelido de Ferrugem lhe cabia em duplo sentido, pela aparência e pela voracidade de sua fome. Diziam que seu estômago digeria até estanho. E esta era sua arma naquele momento. João começou a mostrar-se inquieto no banco traseiro, encolhia-se, com a cabeça entre as pernas e suava de excitação. Quando seu pai e seu irmão perceberam, ele pediu que parassem em algum bar para usar o banheiro.

- Também, tem o olho maior que a barriga. É pra que dar caganeira mesmo - reclamava Pedro.

Seu Antônio batia as mãos no volante demonstrando toda sua impaciência, sequer desligou o carro. Olhava os retrovisores como quem esperasse uma abordagem repentina de alguém que soubesse de suas intenções. Dez minutos depois ele explodiu em fúria.

- Vá lá imprestável, busque aquele rolha agora ou o "sarapóca de vitilico" chega antes da gente e não poderemos armar a espreita.

Antes que Pedro esmurrasse a porta do banheiro do bar, João puxou a descarga e saiu com o rosto molhado de suor. Transpirava de excitação, não de cólicas, pois precisaria de mais uma parada para fazer provocar o encontro de Berimbau com o pai antes da fábrica. Tinha de ser em local movimentado.

Mais algumas esquinas e passariam pela ladeira onde o cunhado morava. Provavelmente estaria já há alguns quarteirões dali e, com sorte, na esquina da padaria da Ptolomeu Valente. Sabia que ele freqüentava a padaria, pois já o vira lá em outras viagens até a fábrica.

- Vamos logo sua inconha. Espero que tenha esvaziado esta pança.

Seu Antônio destilava sua raiva.

- Calma pai, acho que o bolo de chocolate estava meio cru ainda.

- Mesmo assado, pelo tanto que você come qualquer cristão teria uma indigestão.

Pedro não perdia a oportunidade de alfinetar o irmão.

O motor do velho Corcel se esgoelava e poluía a manhã com a fumaça de seu óleo. Seu Antônio ziguezagueava, desviando-se dos carros que pareciam ainda dormitar pelas ruas. A cada semáforo vermelho um palavrão e um olhar furioso que só não perfurava o Ferrugem por primeiro refletir no espelho retrovisor do carro.

Era questão de morte, por isto João precisava se arriscar. Desta vez foi ânsia de vômito. Com uma mão na pança e outra na boca, encurvava o tronco entre os bancos dianteiros.

Pedro se retraía e olhava o pai com cara de assustado. Disfarçadamente João enviava o dedo médio na boca e provocava o vômito. Percebendo a aproximação da padaria, aumentou a freqüência.

- Para pai, ou este "rola-bosta" enche o console do carro de bolo de chocolate azedo.

- Que merda! Eu devia era deixar este traste aí na rua.

- Ali na padaria pai. O João ta ficando roxo.

O cantar dos pneus do velho Corcel chamou a atenção dos fregueses da padaria. O primeiro a sair à porta foi Berimbau que vendo o Ferrugem jogar-se na calçada, tratou logo de acudi-lo, com dificuldades. Mais dois fregueses se aproximaram para arrastá-lo para o banheiro da padaria e lanchonete Ptolomeu. O Português, de jaleco e bigode encardidos gritou:

- Dá bicarbonato, ô pá!

Um bêbado, com um copo de cerveja na mão, receitou:

- Molha a cabeça dele, irmão!

Uma gorda com uniforme azul de cobradora de ônibus, com café numa mão e um pão de chapa na outra retrucou:

- Ajoelha ele e abana!

Lá fora, Seu Antônio derramava-se em desilusão com a cabeça no volante do carro. Pedro não sabia a quem acudir. Estava imóvel, de pé na calçada olhando ora pro pai, ora pro fuzuê na padaria.

Beraldo olhou de soslaio para dentro da padaria e fez um sinal. Ajudou, então, a levar o futuro e amado cunhado para dentro do banheiro, e, saiu pela porta dos fundos. Pressentira algo de errado desde o telefonema, impressão confirmada pelo olhar desesperado de João. Tinha de pensar rápido.

Suando frio, João deixou o banheiro, sentindo-se um pouco melhor. Seu mal-estar não era só falso, tinha também um fundo nervoso, e não fazia idéia de como poderia ajudar mais Beraldo, pois as palavras que o pai lhe dirigia não eram nada amigáveis. Sem ter como adiar mais, voltou para o carro. Seja lá o que Deus quiser. Além do mais, Beraldo desaparecera.

- Estou pronto, pai. Já passou.

- Ótimo. Já estamos atrasados, e o assunto não pode esperar - disse o pai, com um tom que lhe deixou os cabelos ruivos de pé. Onde está o tratante?

- Disse que nos encontrava na fábrica, pai. Tinha um assunto a resolver no caminho.

O carro de seu Antônio nunca correra tanto. Com uma freada brusca, o velho Corcel deu um solavanco em frente ao local combinado. À medida que se aproximavam da entrada da cantina da fábrica, os rapazes não podiam acreditar no que viam.

Na porta, cantarolando, estava Beraldo, poeta-andarilho e noivo sorridente, com o braço dado com... Ritinha?!

- Boa tarde, meu sogro... Boa tarde, cunhados... Imaginem vocês que, quando contei à Ritinha sobre o convite para o almoço, ela fez questão de vir junto. Sabe como é, essa menina tem o sangue quente da mãe... Além do mais, não consigo negar nada a ela, não é mesmo, Amor?
Beraldo dizia isso sorrindo, cheio de cinismo, e por pouco seu Antônio não apertou o pescoço do futuro genro ali mesmo, na frente da filha. Mas o patriarca não podia fazer feio, pois Ritinha, que no fundo tinha mesmo o temperamento igual ao da mãe, voluntariosa e decidida, era bem capaz de sumir no mundo com o poeta-canalha, como seu Antônio o via, em seus pensamentos homicidas.

- Pois é, paizinho... Imaginei que o encontro fosse para tratar das coisas do casamento, então resolvi vir também... - os olhos de Ritinha brilhavam, como duas jóias que em breve o patife teria nas mãos.

Seu Antônio começou então a falar sobre o casório, mostrando bem o quanto seria pródigo na celebração do enlace de sua única filha. Não mediria despesas. Queria tudo do mais fino gosto, para que a festa fosse lembrada por muito tempo. Iria até encomendar o vestido a uma importante costureira, da cidade vizinha, porque ali não tinha nada à altura da beleza de sua filha.

Quanto mais tentava despistar, mais se enrolava. Até que Beraldo, que tinha um sarcasmo proporcional à sua timidez, não deixou por menos:

- Bem, se é costureira famosa, só pode ser a dona Lúcia, não é seu Antônio? Dizem que ponto que ela dá, nunca se desfaz...

Antônio sentiu como se lhe tivessem puxado o tapete. O que dizer então?

- Bom, pai, se ela é tão boa assim, por que não vamos até lá agora, para ela tirar as minhas medidas logo?

Os dentes grandes de Ritinha luziam, parecendo maiores do que nunca.

Aquele dia estava ficando longo demais. O sol ardia como fogueira sobre a cabeça de todos. A crucial diferença entre eles é que, enquanto a cabeça de Seu Antonio queimava e a terra rodava a seus pés, a luz que vinha do rosto de Ritinha levou o pai, prestes a ser desmascarado, ao passado. Fora exatamente pelo sorriso da mãe de Ritinha que ele se apaixonara. Quase pensou em voz alta.

- Ai Meu Deus, sempre falam que na hora da nossa morte a gente lembra da vida toda feito um filme. Será que hoje vai ser meu dia?

Uma confusão de sentimentos invadia sua mente. Lembrou que conhecera Marilda aos 16 anos. Esperava ela passar todos os dias, quando voltava do curso de corte e costura. Viu seus olhos de então, aquela boca carnuda e pintada como um coração e a luz que vinha daquele sorriso de menina-mulher. O calafrio na espinha que sempre teimava em subir e descer durante a espera, era inesquecível. Como fui entrar nessa enrascada, Meu Deus? Como fui trair a Marilda? Logo a mãe (pseudo-nordestina) dos meus filhos... E tentando pensar na justificativa que daria a São Pedro, na porta do céu, foi logo explicando com seus botões.

- Também, ela sempre vivia com dor de cabeça... Quem agüenta? Eu chegava em casa, cansado e logo começava a ladainha: "Tô cansada, Antônio! Você precisa dar um jeito nessas crianças. Os meninos brigaram na rua de baixo. Justo hoje que estou com dor na juntas, a Ritinha não quis lavar a louça, por que estava com o esmalte molhado. O Seu Manuel do empório veio, na nossa porta, cobrar aquela conta atrasada. Parece que escolheu bem a hora! Chegou justo na hora que a linguaruda da frente, D. Candinha, estava no portão."

Olhou pro céu e perguntou, mais uma vez em silêncio.

- São Pedro, não sou de ferro. O senhor acha que eu ia agüentar tudo isto sem dar minhas escapadas? Seja sincero...

Em pleno devaneio, sentiu a mão da filha chacoalhar seu braço.

- Pai... pai... Pelo menos hoje posso ser o centro da atenção? Dá pro senhor resolver se a gente vai na costureira ou não?

Voltando a si, olhava a filha mimada, repetindo sem parar - "igual à mãe"- e pensava em sua salvação.

- Sabe, Ritinha, bem que eu queria ir logo ver esse tal de vestido. Mas eu tava aqui pensando na cara de decepção que a sua mãe vai fazer na hora que souber o que a gente foi, sem convidar ela. Acho melhor escolher essas coisas com calma, por que noiva é uma vez só na vida!

O safado sabia como paparicar aquela mimada e nada justificava partir dessa pra melhor, antes da hora.

- Brigada, paizinho... Você é o melhor pai do mundo!

- Faz assim. Deixa pra outro dia. Vai com ela, filha. Assim você pode escolher o vestido mais lindo do mundo, e eu vou lá depois, só pra acertar o pagamento. Essa parte é pra homem, nem fica bem eu, o pai, ir hoje junto.

Isso era tudo que Ritinha queria. Melhor ir sem ele mesmo, vai que começasse a criar caso Com a mãe sabia que podia contar, sempre estivera do seu lado. Mas o pai era metido a rompantes. Ela queria um vestido bonito, desses cheios de brilhos, cauda, véu de sete metros, tudo a que tinha direito. Nunca ouvira falar dessa tal de Dona Lúcia, mas devia ser boa. E melhor aproveitar que ele estava disposto a gastar.

Logo que voltou para casa correu até a mãe. Ela não se fez de rogada, foi logo pedindo o telefone da tal Madame, queria marcar dia e hora.

Antonio se apavorou. E essa agora? Onde ia arrumar uma Lúcia costureira?

Prometeu para o dia seguinte. Ligaria para o hospital, quem sabe alguém pudesse dar o paradeiro da moça. Passou a noite caraminholando, tinha que dar um jeito. Maldito Berimbau que o metera nisso, mas nada como um dia depois do outro. Logo no café da manhã Dona Marilda cobrou.

- Antônio, vê se acha logo o telefone da costureira. O casamento já está quase aí e coisa feita na correria não é meu feitio.

Ele engasgou com o café e resmungou qualquer coisa. Deu um espôrro nos filhos e tratou de se mandar pro trabalho. Lá pelas tantas, aproveitou uma folguinha e ligou para Lúcia; ela devia ajudá-lo achar uma solução.

- Olha Antonio, eu não sei nem fazer barra de saia, mas tem uma neguinha aqui que é expert. Podemos ir por aí.

- E como vou dar pra minha santa mulher o telefone de casa de putaria?

- Confie em mim. Vou resolver isso.

- Tá bom, mas não demora que ela me come o fígado.

Mal desligou Lúcia foi até o bar. As moças estavam reunidas ali e ela expôs o problema.

- Alguém aí tem uma idéia?

Negona, uma mulata oxigenada de quase dois metros, veio rebolando até o balcão.

- Eu sei quem pode ajudar a gente a resolver este problema. Não conheço ninguém mais esperto do que o safado.

- E quem é? Fala logo, Negona, que eu tô agoniada, coitado do meu Totonho. E do Berimbau também, porque se o sogro for pego na mentira, o casamento dele vai pro espaço. Eu gosto daquele moleque como se fosse meu filho... - Os olhos se encheram de lágrimas, borrando o rímel da véspera. Lucia era famosa pelo coração de manteiga.

A mulata lixou um pouco as unhas, saboreando o suspense, enquanto a mulherada reclamava. Até que ela soltou triunfante:

- O Alfredo!

Todas começaram a falar ao mesmo tempo. O Alfredo! Por que não tinham pensado antes?

- Mas o Alfredo está no Rio, Negona, tu vai querer fazer interurbano pra ele?

Ela largou a lixa de unhas e respondeu com ar triunfante:

- Não, querida, o Alfredo está aqui resolvendo uns negócios. Estive com ele ontem.

Foi o caos no meio do salão - unhada e sapatada para todo lado. A Virgem Loura se atracou com os cabelos da Negona, enquanto a Periquita Indiana mordia sua perna e a Pequena Notável tentava derrubá-la no chão. Parecia até CPMI do Congresso. Lucia gritava, tentando apartar as litigantes:

- Meninas! Estamos aqui resolvendo um assunto sério! Tem Alfredo pra todas. Negona, me dá o telefone, vou ligar pra ele agora.

A mulata gigante deu um safanão, jogou as três longe e subiu pra pegar o celular com o telefone gravado. No bar, o CD do Lupicínio gemia:

"Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada...
só vingança, vingança, vingança ao santos clamar..."

Virgem Loura conferia o olho roxo no espelho e Periquita arrumava o vestido rasgado. Quando a Negona voltou, elas se reuniram ao redor de Lucia, para ouvir o telefonema, esquecidas da briga.

- Alô? Alfredo? Seu traste!... então está na cidade e nem procura a gente? É Lucia, do Hot Night... pois é... eu mesma, danado. Há quanto tempo mesmo... To sabendo que tu está aqui pertinho... Negócios?.. ta bom... eu conheço teus negócios seu safado... Hoje mesmo?... maravilha! Tenho um favor pra te pedir... coisa pouca, só um conselho... Tudo bem, onze horas, sem falta... mas vê se não fura, hein? Eu sei que tu é furador, mas estou falando de outros furos, sem-vergonha...

Lucia desligou as gargalhadas... Este Alfredo não tinha jeito mesmo. E era gostoso o danado do moreno. Se não fosse o rabicho com o Antonio, até que tinha se amigado com ele, naquela época em que esteve passeando no Encantado. Bons tempos... Suas memórias foram cortadas pela Negona, tomando o celular.

Amanhã o Alfredo arrumaria uma solução. O cara era safo.

Ligou para o Antonio e disse que na segunda-feira, daí a dois dias, arrumaria o telefone da costureira, recado que ele passou a mulher.

- Segunda sem falta. É que o Beraldo pegou o telefone errado. Vai conferir com o amigo que conhece a modista. Ele acabou de casar.

Olhou para o genro, punhal no ar.

Beraldo parou um minuto, gozou a aflição do futuro sogro e respondeu:

- Verdade. Segunda eu pego o número certo. Pode ficar calma, querida, que o seu vestido vai ser o mais lindo do universo. Profissional como a Dona Lucia não existe.

Na noite seguinte, um moreno alto, ginga de malandro carioca, atravessou a cortina de vidrilhos na porta da casa noturna. As mulheres correram todas para ele, aos gritinhos. Com seu jeitão malemolente, ele foi afagando a bunda de uma, beijando a boca de outra, beliscando o seio da terceira. Deu um chupão em Lucia e perguntou:

- Qual o problema, minha linda?

Cercado pelas mulheres, escutou o caso todo e decretou.

- Quem é a costureira das putas?

- É a Valdete... mas o estilo dela... não é bem o de uma noiva.

A mulherada caiu na gargalhada. Só o Alfredo ficou sério.

- Nós vamos maquiar a casa da Valdete e ela vai se transformar no mais sério ateliê de noivas do mundo. Deixa comigo. Tenho umas amigas numa loja de confecção de casamento. Arrumo emprestado uns dois vestidos de noiva, descolo umas peças de seda e renda, umas revistas chiques e ainda represento de viado, amigo dela, grande costureiro do exterior.

O safado estava se divertindo com a situação.

Todo mundo aplaudiu e Berenice, que o povo chamava de Pon Pon, um travesti ainda novinho de cabelo ruivo perguntou:

- Posso ir com você?

- Mas de jeito nenhum. Dar pinta com classe como eu, tu não ia conseguir nunca, minha linda.

Novas gargalhadas, muxoxo do rapaz e as mulheres entusiasmadas se prepararam para a maquiagem do ateliê da Valdete, transformada pelo Alfredo em Madame Lucia.

- Só tem um problema - Vanusia lembrou - o nome do ateliê. A gente chama de Fodas de Seda... Uma brincadeira entre nós. Temos que achar um outro bem virginal para substituir.

Nova gargalhada geral. Mas o danado do Alfredo não se apertava:

- A gente muda... deixa eu ver um nome bem poético e parecido pra não dar confusão... Folhas... - Olhou paras o espermacete que se empilhava nas velas em frente retrato da Madona de pernas abertas - ... de Cera.

Lucia fez cara de não gostei, mas quem contrariava o Alfredo? Ia ser Folhas de Cera, ateliê finíssimo de Madame Lucia, ex Valdete, puta muito distinta do Largo da Boca Profunda. E depois, tinha uma justiça poética na história - o vestido da Ritinha, noiva do Beraldo, poeta das marafonas, filha do Seu Antonio, provedor do Hot Night, ia ser confeccionado pela maior modista de puteiros da região.

Sorriu amarga. Vingança é um prato que se come frio.

Lá fora a manhã teimava em aparecer.

Ritinha chegou dirigindo o Corcel do pai, e não parou defronte o número indicado. Tinha vergonha de andar naquela lacraia, por isso preferiu estacionar mais adiante. Dona Marilda achava aquilo ridículo, mas não queria contrariar a menina. Nem sinal de campaínha junto ao portão, Ritinha bateu palmas. A porta se abriu, e uma bicha, louca e enorme, abriu a porta num requebro.

- Pois não, minha santa, pode entrar. A voz não era fina, mas era afetada.

Chegando mais perto Ritinha pode ver os cílios carregados de rímel, a sombra rosa-purpurinada sobre as pálpebras, o rosto bem escanhoado coberto de base. Os lábios enormes exalavam o cheiro adocicado do batom sabor cereja. Uma camisa de seda amarela, desabotoada e amarrada na cintura grossa, algumas correntes douradas sobre o peito largo e sem pêlos, e a calça de linho de um branco imaculado, de boca estreita sobre sapatos bicolores. A louca estendeu a mão como uma duquesa:

- Frinéia, queridinha, prazer. Sua genitora?, perguntou, estendendo a pata de gazela para Dona Marilda.

Mãe e filha se entreolharam ,sem saber se assustadas ou deslumbradas com tais salamaleques. Entraram no "ateliê". Lá dentro, vestindo um pijama de cetim azul escuro com peixinhos cor-de-rosa, Valdete esperava, as duas mãos nos quadrís, como o açucareiro do Chapeleiro Maluco. "Frinéia" foi logo falando:

- Madame Lúcia é muda de nascença, então vocês falam comigo, e eu me entendo com ela na linguagem dos sinais.

Tiveram que inventar isso porque Valdete era mais burra que uma porta, e calada o perigo era menor. Fez o combinado: ofereceu algumas Claudia-Noiva, e ficou vendo as duas folheando as revistas, até que encontraram o que buscavam. Valdete sacudiu a cabeça em sinal de aprovação, pegou a fita métrica, e ia levando Ritinha para tirar as medidas atrás de uma cortina grossa, quando Frinéia, com gestos de pianista com artrite, simulava sinais enquanto falava com autoridade:

- Não senhora! Nunquinha! O doutor recomendou repouso! Trabalho pesado é comigo!

E dizendo isso, praticamente arremessou Valdete sobre uma poltrona, enquanto levava Ritinha para detrás da cortina, com um sorriso de bicha malvada nos lábios.

Aqui, um parêntese: Ritinha era ruiva, tinha olhos azuis e sardas, e isso encantou Beraldo, que a tratava como a um bibelô. O que ele não sabia era que ela tinha mais que isso: um tesão incandescente, que povoava suas noites com sonhos sacanas, onde malandros rudes montavam seu corpo alvo e roliço como Quixotes com lanças enormes e quentes, que a faziam amanhecer com olheiras e vontades reprimidas. Um simples beijo havia demorado dois meses para acontecer. E nada mais acontecera além disso, beijos, beijos, e só. Fechemos o parêntese.

Atrás da cortina, Alfredo segurava a respiração, enquanto Ritinha tirava a blusa e a calça jeans. Virou-se para ele de soutien e calcinha brancos. Por trás do tecido fino, o malandro vislumbrou a pentelharia ruiva. Pediu, com a voz já embargada, que ela virasse de costas. Ela teve uma sensação estranha, mas obedeceu, num volteio cheio de graça. Alfredo ajoelhou-se, circundou os quadris da jovem com a fita métrica, e chegou o rosto bem perto do miolo da fruta, aspirando fundo, como uma cafungada na última carreira. Sua boca ficou cheia d'água, como quando cortava um maracujá maduro. Levantou-se. Passou a fita métrica sobre os seios de Ritinha. Por cima dos seus ombros, viu os bicos crescerem. Encostou seu corpo no dela, e ela quase desfaleceu. Alfredo segurou-a pelos ombros, virou-a para si, e beijou-a na boca. Não como Beraldo a beijava, mas como quem se joga de um precipício, desesperadamente. Depois do beijo, Ritinha olhou para ele com os olhos rútilos, e baixou a mão para onde sua calça queimava suas pernas. Ele reteve-a com um gesto. Colocou o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio. Esperou alguns instantes, até que sua pressão voltasse ao normal, então pediu que ela se vestisse. Saiu detrás da cortina batendo os cílios, rebolando, fazendo boquinha de miosótis. Com gestos de crupiê bêbado e voz de bicha impaciente, pediu que Valdete levasse Dona Marilda para tomar um cafezinho na cozinha. Enquanto as duas se afastavam em silenciosa obediência, Ritinha saía detrás da cortina com rosto afogueado, sorriso nos lábios e esperança no olhar. Em pé, junto à porta aberta, Alfredo deu uma ajeitada no saco, estendeu a mão forte, e pegou as chaves do Corcel. Abraçou Ritinha junto ao seu corpo, e foram andando em direção ao carro. Nunca mais foram vistos.

Beraldo deu de beber, depois de perder sua virgindade com a Negona, numa noite de chuva e choro sob as cobertas; Lúcia descarregou sua fúria depenando a grana do Antonio, que fingia não perceber que Marilda dormia com o Waldir; Pedro engravidou Vanúsia, e mudou-se com ela para Barbacena, onde vende passaportes falsificados; João conheceu um marinheiro do Lloyde Brasileiro por quem se apaixonou, e hoje é cozinheiro de bordo.

Em todas as igrejas, de todas as cidades do mundo, velas seguem chorando espermacetes de cera, e pingos em forma de folhas.