A TIA DE AMSTERDÃ
Leila Silva
 
 

Cresci ouvindo falar dela, sonhava com a cidade, com o seu pequeno apartamento com os canais, as bicicletas, as pontes que ela atravessava para ir à padaria, não havia clichê sobre a Holanda que não me atravessasse a cabeça. De vez em quando falávamos ao telefone, tinha que ser em inglês, tia Mônica nunca tinha se interessado pelo português. Não era por desprezo, só não tinha razão para dedicar-se a mais essa língua, nossa família era do Suriname e tínhamos todos passaporte holandês, os que não sabiam viver no frio optaram pelo Brasil, os outros foram para a Holanda. A tia de Amsterdã era gentil no telefone e de vez em quando nos enviava presentes pelo correio ou por algum parente, bombons, camisetas de turista, coisas assim.

Finalmente o dia de visitar essa tia chegou. Feliz e ingênuo, porque as duas coisas andam juntas, com mochila nas costas e pouca mala, estava preparado para desbravar os Países Baixos. Na chegada, confusão, minha mala nunca chegava na esteira, já estava tonto de olhar para as bagagens, mas fiquei lá plantado até o momento em que nada mais rodava. Fui informado que teria que esperar até o dia seguinte pelos meus apetrechos, viriam em outro vôo. Na saída encontrei a tia já preocupada, nervosa com um cigarro entre os dedos. Fomos para o seu apartamento, expliquei-lhe que ia ter que comprar pelo menos uma calça. ‘Não se preocupe’, disse e pediu o meu número. Que eu ficasse descansando, ela ia cuidar disso para mim. Saiu às pressas e, em menos de uma hora estava de volta não com uma, mas sete calças. ‘Sete? Tia, não precisava!’ Presente para o sobrinho brasileiro. Fiquei sem graça, mas vai ver que era normal, que ali compravam calças assim, a rodo, um modo de compensar a falta de espaço. Eu mesmo nunca tinha comprado mais de duas de uma só vez.

Durante a semana visitei museus, cafés, cinema, casa de Anne Frank. De vez em quando a tia desaparecia, ‘um minutinho’, dizia e voltava meio vermelha e com o cigarro trêmulo, tentando acertar os lábios. Uma vez em casa, nem me perguntava se eu queria, preparava duas canecas de chá, me entregava uma e descia para o porão. Um dia decidi dar uma olhada no lugar, um porão, para mim que não estava habituado, era por si só envolto em certo mistério. Aproveitei uma das saídas de tia Mônica e desci a escadinha que cheirava a mofo, a pequena porta estava fechada a chave, mas percebi que havia uma luz acesa lá dentro. Deitei-me no chão e pude ver, através do grande vão abaixo da porta, uns pés de estantes. Nada mais. Escutei um barulho na porta de cima e subi as escadas como um louco, corri para a frente da televisão, peguei o controle e fingi que estava procurando um canal. Estava agindo como uma criança idiota, pensei, com as mãos a tremer. Tremendo pra nada, imbecil curioso. Raiva de mim mesmo, mas logo foi a tia descendo as escadas, escutei a porta se abrir e….pronto, minha curiosidade estava atiçada de novo. Fui até a ponta da escada e perguntei, muito gentil, ‘Tia, quer ajuda?’ Ela subiu no mesmo instante e, sem graça, procurando o cigarro, disse: ‘Não, não, aquilo ali está uma bagunça só, melhor ficar longe.’ ‘Se quiser posso te ajudar a arrumar.’ ‘Não, um dia, um dia’ E a pequena chave foi discretamente para o bolso do casaco que ficava pendurado perto da porta de entrada, ela não saía sem ele.

De manhã, quando ela me propôs que saíssemos, aleguei dor de cabeça e sugeri que ela fosse só, eu poderia encontrá-la mais tarde, já conseguia me virar pela cidade, era só me dizer onde. Expliquei e fui lhe entregando o casaco. Distraí-a com umas histórias de família e consegui pegar a chave enquanto a ajudava a vesti-lo.. Pela janela fiquei observando ela desaparecer na esquina, morrendo de medo que começasse a revirar os bolsos. Desci desesperado para o porão, abri a porta e vi quatro prateleiras organizadas, repletas de carteiras, cada carteira tinha um papel colado por fora com uma data e uma indicação de lugar. Abri uma, dinheiro e documentos, outra, mesma coisa e outra e outra, uma infinidade de carteiras. Fiquei meio zonzo, olhando para aquelas prateleiras e quase desfaleci ao ouvir um barulho na porta, subi as escadas como pude, deitei-me no sofá sem barulho e fingi que estava dormindo. Não sei se ela acreditou, olhou-me aflita e disse que tinha voltado por causa da chave, antes de tomar o bonde percebeu que não estava no seu bolso, ‘Você não a viu em algum lugar?’ ‘Chave, que chave?’ Disse passando a mão pela testa como se estivesse a arder e tomei uma aspirina para dar mais ênfase. Ela acendeu um cigarro e ficou me explicando como era a tal chave, eu só balançava a cabeça. ‘Tia, agora estou melhor, vou sair um pouco’. Estava louco para escapar e telefonar para a minha mãe. ‘Eu vou com você’, disse e não me deixava em paz por um segundo até que me dei conta de que podia conversar com minha mãe na frente dela, bastava que eu falasse em português e evitasse as palavras importantes que tivessem alguma semelhança com o inglês. Assim fiz, minha mãe estranhou o tom no começo, mas depois entendeu o que eu queria dizer, ou seja, a encenação. Minha tia não tirava os olhos de mim, eu contava tudo rindo e colocando ‘saudades’ aqui e ali, essa palavra ela conhecia. Minha mãe disse que ia me telefonar mais tarde para me dizer o que fazer. Andamos intranquilos, a tia, mais estranha que nunca. A chave no meu bolso. Acho que ela sabia. Paramos num café, eu aproveitei e fui ao toalete, peguei a porcaria da chave e joguei no lixo. Voltei mais leve.

Minha mãe telefonou à noite e disse que já tinha ouvido falar sobre a cleptomania da cunhada, nunca dera ouvidos, não imaginava que fosse maníaca a esse ponto. Ela já tinha telefonado para outros parentes e eles estavam me esperando, eu podia ir para lá no dia seguinte. ‘É melhor’. Passei a noite em claro e tia Mônica também, do sofá eu a ouvia remexer as gavetas à procura da cópia da chave, certamente. Fingi dormir. No dia seguinte arrumei as malas e expliquei que ia para a casa dos outros parentes. Ela não tentou me convencer a ficar, acompanhou-me até o ponto e disse que voltasse para tomar chá com ela antes de voltar para o Brasil. Não voltei à casa dela, telefonei dois dias antes do meu retorno e marcamos encontro de despedida em um café. Nunca falamos do porão.

 
 

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