SUJEITO DE VOZ PASSIVA
Eduardo Sales
(Duninja)
 
 

A caneta expôs sua tese ao velho Íssel. "Aposentar-se é andar em labirintos". Se a hora é tediosa, ele e o relógio da cozinha param também. E o que vem agora é só a dor de cabeça, parecida com labirintite.

Íssel, ao longo de sua vida, sempre teve idéias brilhantes, mas odeia escrever ou expô-las verbalmente. Geralmente são nessas horas paradas que se surpreende com o que vem de fora de si. "Você está fora de si?"

Se a caneta tivesse vida própria, sentiria o sangue dos dedos de Íssel pulsando vertiginosos na cinturinha dela. E, antes de se deixar escrever, ela faria questão de espirrar toda sua tinta fora, até jazer em paz, num lixão qualquer.

Por alguma vontade vulgar e egocêntrica, Íssel decide, somente agora, amamentar algum leitor, talvez um sobrinho ou algum filho do futuro dono da casa. De repente encontra a caneta e a danada está sem tinta. "Por que me toma dessa maneira? Por que me contraria? Objeto fulgaz!".

"Estou sem tinta, Íssel, mas não morri! Minha vida útil só acaba quando me quebrarem de vez. Ainda ocupo espaço. Morra de inveja, Íssel, eu ocupo espaço! E você aí, 'cagão'? Com medo do mundo, trancafiado em mil paredes. Ninguém te vê. As pessoas me vêem, decepcionam-se quando me pegam, mas eu estou lá, sempre na ativa. Quando me jogar fora, quem sabe eu não fure um saco e dê mais trabalho ao lixeiro."

"Quieta, caneta! Tu és sempre predicado, nunca sujeito." Nessa idade, cinqüenta e poucos, o ser precisa de paz; dizem que é começo do fim. Besteira. Íssel tem muitos planos e muita vontade de aparecer. Durante toda a vida, até a sua aposentadoria, nunca fizera nada que realmente gostasse, não tinha tempo. Ele odeia bocha. O negócio é viver no litoral, vender frutas e ter uma vida sadia. "Ainda é cedo, tenho muito tempo pela frente".

Pois bem, o rapaz muda-se semana que vem e vai, vai para a praia, sozinho, sem filhos e esposa. Um sentimento saudosista enche-o quando se vê numa foto da redação onde trabalhou por trinta anos, no principal jornal da cidade. E a caneta em sua mão.

"Sou objeto. Mas ao lado de uma vida passiva como a sua, só poderia mesmo me tornar sujeito. Sua vida foi cumprir ordens e fingir que a voz do seu patrão era a sua voz. Do seu lado sou sujeito, sujeito de uma voz passiva."1

"Nunca fui passivo, britadeira! Sempre defendi os interesses coletivos da população, informando-a com isenção e responsabilidade."

"Tu és meu escravo. Eu sou a tinta da sua submissão. Eu dou as coordenadas dos seus passos."

"Como tu és densa, instrumento insignificante! Se não tiver você, vai o lápis. E se o lápis ausentar-se, vai o sangue. Você não existe! Se pensas mesmo que é sujeito, saiba que o é de uma voz passiva, assim, sempre será objeto daquele que tem a atitude, a ação, e, nunca um objeto poderá ter voz."

O sujeito escuta a campainha e sai do quarto muito empolgado por ter convencido um objeto a se portar como tal. Antes, levanta-se da cadeira de praia, pega a caneta prateada, acarinha-a, e, quebra a danadinha. "Eu quebro a caneta. A caneta é quebrada por mim. Eu sou mais eu."

 
 

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