APRISIONADA
Luciana Franco
 
 

A janela da sacada. A janela da sacada do seu quarto. A janela da sacada do seu quarto moldava o quadro. Ela nunca pousara. Ela nunca pousara, e nem pousaria, para pintor algum. Mas imaginava.

Imaginava que, em algum momento, ele abriria a sua blusa. A blusa branca, de fitinhas brancas e rendinhas brancas. A blusa que a mãe fizera para o seu aniversário. A blusa escorregaria pelos dedos sujos de tinta do pintor. E os dedos roçariam os seus seios. Seus seios pequenos e brancos e lívidos. Seus seios castos no centro do quadro.

Também não pintava. Nunca pintaria coisa alguma. Mas sabia que ao fundo seria uma manhã de luz clara. Esverdeada. E ela, ao centro, aprisionada, não sorriria.

Aguardava.

Todos os dias, entre sete e sete e trinta, aguardava. Era a hora. A hora em que ele subia a rua. A rua da sua casa. Da sacada ela o via. Com uma escada nas costas. Uma escada pesada. Às vezes, algumas latas de tinta. Ela olhava. E àquela hora, do lugar em que estava, o sol laminava os cabelos negros do homem. Ele nunca levantava os olhos. Mas ela os sabia pretos. Pretos e brilhantes.

Do outro lado da rua, ele passava pela sacada da sua casa. Era o esforço. Por isso nunca olhava para os lados. Porque estava concentrado. Carregava a escada pesada ladeira acima. Para a construção. Construção não. Reforma. Reforma da casa. Ele estava reformando a casa velha.

Quanto tempo duraria a reforma? A vida toda. Ela desejava que fosse a vida toda. Era muito íngreme a rua da sua casa. Ela sentia. Porque sentia tudo. Ela sentia o esforço dele. As gotas de suor. As gotas que escorriam coloridas. Como um arco-íris. Pela testa do homem. E ele parava. Encostava a escada em algum muro. Tirava um pano do fundo do bolso. Um pano sujo de tinta. E enxugava o rosto.

Teve manhãs que choveram. Ele não veio em algumas delas. Sete e trinta, oito, nove, dez, onze, meio-dia. A mãe chamava para o almoço. Ela, vazia, não respondia. Eram dias de irritações. Dias mórbidos em que as horas não passavam. A mãe não entendia.

Mas em outras manhãs o arco-íris batia na sacada fria e ela ressurgia das cinzas. Com todas as cores. Pousada na sacada, observando. Ao homem com as tintas e a escada.

Certa vez. Era manhã de luz verde, como ela intuíra. Ele parou. Justamente em frente à sacada da sua janela. E a janela era um quadro que sugava pra dentro. Eram nove e trinta. Naquele dia ele estava atrasado. E ela tremia. Tremia porque já havia desistido. Mas ele veio. Parou exatamente à frente da sacada do seu quarto para enxugar o suor do rosto. E olhou para o outro lado da rua. E a viu.

Uma revoada de pássaros, brancos, lívidos como seus pequenos seios que iam e vinham rasgando o tecido, as rendas, as fitas, os dedos solícitos da mãe, a manhã cinza, ela rodou dentro do quadro, porque nenhuma posição cabia dentro do quadro, nenhuma pose, era tanta vontade de ser bem vista, de ser amada, de ser querida por ele que ela sorriu como um sol para o homem que do outro lado da rua, sem saber bem como, o pano sujo de tinta parado no meio do ato, o suor escorrendo no rosto, um mundo de cores, verde, marinho, cinza, negro, vermelho, branco, azul, azul da cor do céu que ele nunca via porque sempre caminhava com a cabeça baixa e o peso da escada e a casa velha e vazia no final da linha, sem nenhum desejo, agora com todos, sem saber bem como ele também desejou muito à menina e sorriu também para ela, o seu melhor sorriso, por um curto espaço de tempo, uma eternidade de tempo, uma hora parada no nada que durou a eternidade do instante em que se instalou a sombra, essa amante dos contrastes, a sombra que tapou o sol e fez vibrar frio o metal da cadeira, a cadeira que rodou dentro dele, que rodou dentro dela, a cadeira de rodas no centro do quadro.

 
 

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