UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO
Kalindra Baba
 
 

Era louco por aquela música do Lupicínio:

"Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
Ter loucura por uma mulher"

Lembrava-se sempre da Margarida. Ingrata! Não passava um dia que não se recordasse dela. Era apaixonado! Tinha até se casado de papel passado.

"E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer..."

Quem também se lembrava muito bem do chororô e das bebedeiras no balcão de seu botequim, era o Afrânio. Tanto que telefonou pro amigo avisando do concurso que a Crepúsculo Suruiense estava lançando, somente para cantantes amadores: R$ 250,00 de prêmio para a melhor interpretação da "Nervos de Aço": merecida homenagem póstuma ao iluminadíssimo (anunciava a Rádio aos berros) compositor, que no próximo dia 19 de setembro comemoraria 91 anos.

Tinha vindo de encomenda: desempregado há quatro meses, alguns trocados lhe restavam para matar a fome da mulher, a segunda, e da filha pequena. E ainda pensou que, se vencesse, "Deus é grande", estaria meio vingado, e no lucro.

Pediu ao Afrânio que o inscrevesse. Há nove anos, à época do abandono, parecia uma vitrola emperrada, repetindo sem parar:

"Há pessoas com nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração..."

Agora era uma questão de treino. Ainda estávamos em agosto, então, era só treinar, treinar, treinar. Foram setenta e oito reclamações registradas no Livro de Ocorrências do condomínio daquela cabeça-de-porco onde sobrevivia na Praia de Botafogo.

No dia marcado pegou a mulher, a segunda, a filha pequena e o ônibus da Viação, pra Magé, que ficava logo pertinho. Correram pra Suruí, para o auditório da Rádio.

Tirou o segundo lugar. Perdeu pra Jesuíno de Freitas, que estava em vias de ser largado pela quarta vez, pela mesma mulher.

 
 

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