ESPANTALHO
Bárbara Helena
 
 

A água deformava a máscara, fazendo ondular o chapéu, aba desabada. Peixes corriam entre eles, cardumes coloridos, algas balançavam, melancolicamente.

- Está disposto a pagar o preço?

- Sempre estive.

- É maior, definitivo.

Pensamento vinha em bolhas, explodindo na base do crânio.

- Quer tanto este canal de televisão?

- Sim - palavra verde sobre os peixes, bailando ao redor. Silêncio cercava os corais e afundava.

Redemoinho agitou a água, puxando seu corpo para o fundo, na direção do abismo escuro entre as rochas pontiagudas. Tentou subir, não conseguiu, pesava mil quilos de angústia. A água inundou os pulmões.

Falta de ar. Acordou suando.

Jéssica (nascida Maria Odete) ressonava regularmente, os seios redondos subindo e descendo, sob a camisola negra. Acariciou levemente seu corpo e tentou relaxar. Amanhã teria a resposta do governo sobre a concessão. Toda uma vida de luta por um fio.

"Enfezado, enfezado, nariz de bolota, nariz de bolota."

Os trigais ondulando no vento, céu azul da infância, vozes cruéis arrancando lágrimas de raiva. Gosto da terra, o peso dos meninos, punhos destruindo seu nariz, roupas rasgadas. Em casa, pai acabava o serviço com o cinto.

"Maricas! Apanhar feito moleque, filho de uma égua!... Couro descia sobre a carne machucada."

Mãe parada num canto, fingindo não ver. Lá fora a relva verde, gafanhotos sem cabeça, esmagava pintinhos, ódio no coração, preso, sem tampa.

No milharal, o espantalho ganhou vida:

- Agostinhoooooo...

Coração quase parou. Assombração.

- Sou seu amigo, foge não... quer se vingar de todos eles?

Palavra mágica

"mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada... só vingança, vingança, vingança aos santos bradar..."

Mãe cantava e ele invocava - agora estava ali, espantalho de máscara, chapéu desabado.

Jéssica passou a mão fresca sobre a face morena:

- Está na hora, Agostinho. Não ouviu o despertador?

- Tive um pesadelo, dormi pesado.

- Natural, é a tensão da espera. Mas vamos ganhar.

Vamos, cara pálida? Cadela mentirosa. O dossiê do detetive queimava na gaveta. Fodendo com um modelinho barato, um puto de dez tostões. Rameira!... Ia vencer sim, estava tudo combinado. Com o governo e as forças do mal.

Então.. seria a vez dela...

Riu e a mulher sentiu frio, ajeitou a camisola. Beijou a curva dos seios , mordeu de leve - piranha gostosa, vai me pagar com juros. Arrancou a roupa com violência, ela se encolheu assustada, depois cedeu. O homem ia ser dono da maior rede de TV do Brasil.

Dois meninos foram achados no poço - pescoço quebrado. Miguel caiu sobre o ancinho, dias no hospital, não resistiu. Francisco pegou maleita, febre malsã. Bento se cortou de vidros, perdeu um olho sobreviveu marcado. Romarias do povo - o que estava acontecendo aos seus garotos?

O pai, bóia-fria, caiu do caminhão. Mãe rezava, olhava Agostinho com medo - por ele. Ou seria dele? Foi embora da cidade maldita logo após o enterro. Na janela do ônibus viu o milharal amarelo. Ao longe um chapéu desabado ondulava.

Pagaria o preço. Todos os preços. Alma não existe.

Sonho incomodava, apertava a garganta - lembrança da água, falta de ar. Desapertou a gravata. Ganhara a concessão. Mais uma vez o enfezado, nariz de bolacha, vencera os inimigos. Jéssica comemorava, bebendo devagar, dentes brancos mordendo o copo. Cadela!... a próxima.

Iate novíssimo, abarrotado de gente. Todos ali para saudá-lo - novo rei das comunicações, seu império não teria limites. O cantor entrou no palco e inúmeros canhões de luz incidiram sobre ele.

Olhou para as mesas cheias, o governador com a terceira mulher, prefeito, diretores de todos os núcleos, a sociedade em peso prestigiando. Teria as fêmeas mais belas, compraria fidelidade e prestígio, pisaria nos que o maltrataram.

O peito opresso incomodava, uma dor fina descendo pelo braço. Enquanto a orquestra executava a introdução, sumiu para o tombadilho.

Ar fresco e brisa doce acalmaram o tumulto no tórax. O mar se estendia negro, marcado pela espuma fervilhante do barco. Mil estrelas pesavam no céu.

Ele se recostou na amurada. Bebera demais. Não ia passar mal no dia do seu triunfo, não seria justo. A dor foi ficando mais forte, náusea violenta, debruçou-se sobre a grade. E viu:

Sob a água transparente, uma figura boiando, cadáver cinzento, chapéu desabado. Pouco a pouco a ondulação foi retirando a máscara, revelando o rosto inchado.

Era o seu. Agostinho. Nariz de bolota.

A tonteira violenta fez rodar o mundo. Perdeu o equilíbrio, despencou no mar escuro. Tentou bater os pés, pesavam como chumbo, arrastando-o, cada vez mais fundo, para o abismo rochoso lá embaixo.

Peixes coloridos passavam silenciosamente, pulmões se enchiam de água. Num último esforço olhou para cima.

Jéssica sorria da amurada, acenando - adeus! Ao seu lado, um homem alto de máscara branca e chapéu desabado.

 
 

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