TELEVISÃO
Claudio Alecrim
 
 

Estava diante da TV com a carta de Alice. Suas letras de traço regular, harmonioso desenho de um depoimento, onde se despia de forma quase imperceptível. Podia ouvir sua voz misturada ao som do programa de TV, delicada, com pausas longas e absolutamente resignadas. Deixara seu amor como legado para meu relicário. O fim que sentimos fatal, a sensação de loucura do que imaginamos ser para sempre, como o presente perpétuo, a guilhotina que não pára de despencar e a imobilidade que existe em tudo a nossa volta, mais forte do que o pulso e o sangue que se esvai sem que se perceba.

Peguei o telefone para tentar, uma última vez, falar com Alice. Enquanto digitava os números incandescentes do celular, a voz da TV pareceu humana, sem os ruídos e interferências, mais próxima. Peguei, então, o controle e escutei alto e dentro do apartamento.

- Não!

Ajeitou a gravata e continuou...

- Desculpe, mas não insista...

Olhei para o meu copo de uísque atribuindo-lhe uma provável alucinação...

- Não está ficando louco. É que não posso mais vê-lo nesse estado...

- Pensei que a única pessoa a ver alguém aqui fosse eu...

- Não sabe como sofro diante daquelas caras patéticas e olhares fixos...

- Pode ver quem o assiste?

- É como olhar por uma fechadura... Ninguém percebe.

- É um invasor... Deve ser um tarado...

- Não estava no contrato quando assinei... Acredite em mim, não é fácil ver as pessoas e suas caras sem esperança de olhar perdido enquanto falo meu texto.

- Está errado.

- O que é certo?

- Não pretendo filosofar... Estou passando por um drama.

- Troque de lugar comigo e saberá o que é um drama... Aquelas bocas abertas de pessoas mergulhadas em sono profundo. Sexo rápido como um carimbo de repartição pública. A vida diante da TV é um horror...

- Sempre achei o contrário...

- Reconsidere. Imagine um sujeito mastigando picles feito um animal doméstico...

- Deve ser horrível...

- Meu coração não é duro o bastante.

- Mude de profissão... Vou mudar o canal...

- Por favor, não faça isso... Poderia parar diante de um lunático ou psicopata...

- Vamos fazer o quê?

- Esqueça a TV até pegar no sono... Não ligue para a pessoa também.

- Do que está falando?

- É uma mulher?

- É.

- Esqueça. Está fazendo mal a você... Já vi casos parecidos...Um suicídio!

- O cara deu um tiro na cabeça?

- Se jogou pela janela...

- Deve ser duro mesmo...

- Não tem idéia... Agora vou entrar em cena...

- Acho melhor desligar a TV. Já é tarde...

- Faça como achar melhor...

- Até outra hora...

- Até...

O silêncio voltou. Coloquei o telefone em cima da mesa junto com a carta de Alice. Que pobre alma presa àquela caixa cheia de transistores, pensei. Alice estava mais distante. Afinal, em que mundo vivíamos? Fui ao meu armário e escolhi uma roupa elegante para assistir à sexy apresentadora do canal de variedades.

 
 

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