CHANEL Nº 5
Luís Valise
 
 

Acordou quando a roda da direita saiu da estrada. O solavanco repentino o fez agarrar o volante com força, olhos buscando desesperados o enorme caminhão que, surgindo de repente, esmagaria seu carro sem dó, com ele dentro. Foi apenas uma fração de segundo. A estrada à sua frente se estendia solitária como uma jibóia dormindo ao sol. Aquela era a pior hora para dirigir, quando o sol começa a murchar por detrás dos seios tesos da cordilheira dos Andes, e os olhos já não distinguem mancha de óleo, buraco ou bicho morto no asfalto. Vinha tocando direto, mais de vinte e quatro horas, só parando para reabastecer e desaguar a porradona de cervejas que agora cobrava seu preço. Precisava arranjar um lugar para dormir.

Mais de vinte e quatro horas antes, seu revólver tinha todas as balas intactas, e o Milton Peixeiro ainda não havia puxado a faca guardada sob a camisa. Esse foi seu erro, puxar a faca cedo demais. A distância entre os dois ainda era de uns três ou quatro metros. Fatal, fatal. Foi o medo, a promessa ouvida semanas atrás:

- Abre o olho, Peixeiro: - Na próxima vez que te encontrar, eu te mato.

O outro sabia que ele não brincava. Passou a andar armado, ressabiado, com medo da sombra. Podia ter mudado de cidade, ou ao menos de bairro, mas se achava muito macho: - "Na minha terra, é na peixeira!", costumava dizer. Talvez na terra dele, não na cidade grande. Ali era na bala. E assim foi. Viu quando o outro entrou no bar. Encostado no balcão, afastou o copo de cerveja e endireitou o corpo. O matuto devia ter esperado um pouco mais, chegado mais perto, distância mais curta. Mas não, foi entrando e metendo a mão debaixo da camisa. Daquele jeito era quase covardia, mas promessa é promessa, e ele não esperou para ver o tamanho da lâmina. O Taurus .38 tinha cano longo, tão longo que com o braço esticado ficou a alguns palmos do peito do outro. Deu dois tiros seguidos, sempre dois, modo de segurança, mas o outro não caiu logo, seu olhar morreu primeiro que as pernas, então ele deu mais um por nervosismo, que ninguém é de ferro. E tudo sabe por quê? Acertou: - Mulher. Antes de dar no pé, mandou recado pelo Pagú:

- Diz pra ela me esperar, que eu volto.

Mantinha as pálpebras erguidas num esforço de alterofilista. O pé direito mal comandava o acelerador, e o carro se arrastava na estrada como um boêmio na maratona. Luzes ao longe trouxeram um vigor inesperado, e assim conseguiu chegar a um povoado que se resumia a um posto de gasolina na estrada, duas ruas de terra e uma igreja no alto de um barranco. Enquanto abastecia o carro, perguntou por hotel ou pousada. Havia uma pensão na Avenida Presidente Médici, e seguiu para lá, certo que a única tortura seriam as pulgas. O quarto era abafado, começou a suar, mesmo de cuecas, e esta foi sua última sensação. Quando acordou ainda estava suando, e o sol se escondia no dia seguinte. Tinha somente a roupa do corpo, e quando é assim não há muito o que fazer. Pegou a toalha e o sabonete sobre a cômoda, e andou até o banheiro no corredor de quartos. Só tinha água fria, e ela estava morna. Sentiu-se melhor depois do banho. Voltou ao quarto e vestiu a mesma roupa. Sentiu fome. Dirigiu-se ao refeitório na sala de entrada da pensão. A dona do lugar serviu salada, arroz, feijão e frango ensopado com mandioca cortada em rodelas, e perguntou se podia jantar com ele. A solidão, mesmo nos trópicos, é um bicho com dentes gelados. Se a conversa serviu para que ele não pensasse no Milton Peixeiro, não evitou a saudade de Marília. Pela primeira vez sentia saudade de alguém. Matara um homem por causa dela, e agora ela tinha obrigação de esperar sua volta, e ele um dia voltaria. Até lá precisava arranjar um jeito de comer todos os dias, um lugar pra dormir todas as noites. Dona Júlia sabia de um lugar onde um homem não seria encontrado, mas ele não tinha tipo para aquele serviço. Era preciso ser mais forte, mais rude, meter medo só de olhar. Ele disse que gostaria de tentar, então ela mandou que ele fosse procurar o Abel numa casa do outro lado da estrada, única casa na única rua. Um bordel.

Do outro lado da estrada o arvoredo não deixava ver a casa rodeada de grandes caminhões. Um fio de luz no alpendre iluminava um cachorro dormindo sobre o chão de cimento. A porta estava apenas encostada. Entrou no ambiente enfumaçado. Mulheres tristemente maquiadas circulavam pela sala, oferecendo muito por pouco a caminhoneiros desatinados. Uma logo se aproximou, era jovem, usava um baton exageradamente vermelho e cheirava a brilhantina de quermesse. Ele pediu uma cerveja e dois copos, o que para ela era mais que uma promessa. Deixou que ela sentasse na sua perna, perguntou seu nome, ela respondeu Jéssica, e disse que fazia de tudo. Ele então pediu que ela começasse dizendo quem era o tal de Abel. Ela ficou séria na mesma hora, o corpo entrou em estado de alerta, e ele percebeu que o emprego devia mesmo ser temporário.

- Não posso dizer.

- Só perguntei quem ele é.

- É o dono. De tudo.

- Onde ele fica?

- Nos fundos.

- Tem alguém com ele?

- Tchau. Jéssica levantou e foi sentar com um tipo aloirado, de camiseta regata e chinelos.

Ele terminou sua cerveja e andou em direção aos fundos da casa, como quem buscasse um banheiro. Foi logo alcançado por um tipo parrudo, vestindo blusão de couro. Com aquele calor?

- Onde você pensa que vai?

- Vou falar com o Abel.

- O quê você quer com ele?

- Dona Júlia, da Pensão Auriverde, disse que ele precisa de um ajudante.

- E você quer o serviço?

- Posso tentar.

- Não pode, não. Tem que comer muito arroz e feijão, antes.

- Quem decide é você ou ele?

- Ele.

- Então. Quero falar com ele.

O tipo parrudo avaliou seu olhar, seu tamanho, e saiu balançando a cabeça negativamente:

- Espera aí. E sumiu no corredor com cheiro de desinfetante.

De volta à sala, sentou-se, pediu outra cerveja e sorriu para Jéssica. Sentiu vontade de fumar, mas voltar depois de três anos seria burrice. O parrudo chegou:

- Vem comigo.

No fundo do corredor, à direita, uma porta reforçada. O parrudo deu três pancadas e girou a maçaneta. Entrou primeiro, o parrudo entrou atrás. O tal de Abel era um homem forte, tinha feições de árabe e voz grossa:

- Fala.

- Dona Júlia disse que o senhor precisa de um ajudante.

- E quem disse que você serve?

- Posso tentar.

- Você é tira?

- Não.

- Se for, morre.

- Não sou.

- Procuro alguém que me proteja. Você sabe lutar?

- Não.

- Nem boxe? Jiu-Jitsu? Capoeira?

- Nada.

- Porra, o quê você sabe?

- Eu mato.

O tal de Abel ficou olhando o homem fixamente. O parrudo, atrás, mexeu-se, incomodado. O dono de tudo perguntou, sorrisinho desconfiado:

- Mata, mesmo?

- Mato.

- Qualquer um?

- É.

- Então mate esse cara atrás de você.

Com um movimento rápido o homem fez surgir em sua mão direita um revólver preto de cano longo. Apontou para a testa do parrudo, engatilhou, e no último instante o tal de Abel ordenou:

- Pare!

Ele ficou com o braço estendido, a arma engatilhada, enquanto o parrudo amarelava, suava e tremia, tudo no mesmo instante. O homem perguntou:

- Qual é o seu nome?

- Jonas. Não é, mas agora é.

- De onde você é?

- De uma cidade grande.

- Quer mesmo trabalhar para mim? Talvez da próxima eu não mande parar.

- Tudo bem.

- Pegue suas coisas na pensão e volte para cá.

- Tudo que eu tenho está aqui.

Em seguida o homem dirigiu-se ao parrudo:

- Mostre o quarto dele, depois volte aqui.

No caminho, como o parrudo ainda tremesse um pouco, ele disse:

- Fica frio, era só um teste.

- E se não fosse?

- Era só um teste.

A história deve ter se espalhado, e aumentada, porque durante o tempo em que esteve lá nunca mais precisou sacar o revólver. O quarto não tinha pulgas, e às vezes tinha Jéssica.

Depois de três anos ele comprou a Pensão Auriverde. Jéssica começou a dar palpites, ele contou sobre Marília. Jéssica sofreu. As mulheres sempre sofrem.

No ônibus de volta à cidade grande, ele pensava em Marília, e de como ela ficaria contente em voltar com ele, ser dona da pensão. Para sempre.

Misturou-se à multidão na rodoviária, tomou um táxi, deu o endereço. Chegou no mesmo bar. Foi alvo de curiosidade. Não deu muitas explicações. Perguntou pelo Pagu, onde poderia encontra-lo. Deram o endereço. Era o mesmo de Marília.

- Pois é, eles estão juntos desde que você foi embora. Mas não demora ele pinta por aqui.

Junto ao balcão, pediu uma cerveja. Sentiu o cano do revólver roçar sua pele. Esperaria pelo Pagu, depois compraria um perfume dos bons para Jéssica.

 
 

fale com o autor