O PERDÃO É MÁGICO
Eduardo Selga
 
 

O mágico que criou o mundo e os elementos seguia, cabisbaixo, os braços cruzados nas costas, sandálias, a voz sumida e marrom preocupada em interpretar bem a primeira canção para criança dormir composta pelo Homem, da qual gostava sobremaneira. O aguaceiro de águas teimosas querendo romper o açude dos olhos: saudade de tudo o que um dia planejara e nunca aconteceu. Esmorecimento. Chutava aleatoriamente pedregulhos no decorrer da estrada, sua velha conhecida. Onde terei pecado? Nas substâncias utilizadas no barro original?... Difícil acreditar, misturei tanto amor no preparo... ou talvez, vá lá saber, devesse ter posto menos entusiasmo no sopro que dei vida àquele único protótipo humano. Perdoável, contudo: por inexperiente ainda nas artes da criação, supunha estar diante da minha obra-prima, um trabalho divino. Natural a felicidade. Triste é a certeza de que, mesmo quisesse eu remendar os escombros da Terra e do Homem, a catástrofe voltaria a acontecer. Mais cedo... mais tarde... Porque ignoro exatamente onde a falha estrutural no projeto.

Na verdade, seria desnecessário atravessar o portão metálico ainda em pé, sobrevivente aos acontecimentos: os quatro muros do cemitério nem pensaram duas vezes quando vieram abaixo, a exemplo de quase tudo o que foi sólido no mundo. Ainda assim, por respeito ao simbolismo do local ou mero protocolo, optou girar a maçaneta, um leve empurrão. Descalço das franciscanas, silenciou a cantiga de adormecer. Olhos buscando a sepultura exata. Calmamente. Senhor de todo o tempo do mundo. Mas como encontrar... se a partir do solo, mesmo sem vento balançando o ar, fugiam cinzas e mais cinzas voando sem destino? Com certeza ansiosas reencontrar ao menos parte daquilo a que haviam pertencido: árvore, lápide, lágrima, lástima de uma dor, flor, reza, alguém morto. Enquanto pisava silencioso por entre as quadras, pensativo e angustiado, percebeu que só muito longe no horizonte havia restos de organismos que poderiam ainda estar vivos, na forma de carvalhos retorcidos. Distantes. Onde o cemitério era encruzilhada e morria ao fazer fronteira com o riacho grande em que se transformara o Pacífico. Provavelmente aos pés das árvores estaria o sepulcro de que tanto necessitava encontrar para repor ordem nos pensamentos e planos para o futuro. Se planos ainda houvesse. Se coubesse futuro à raça. Foi quando ouviu um diálogo efusivo entre pássaros, composto por dós e rés e mis. Pássaros?! Nenhum gesto para conter a própria alegria. Estariam próximos às árvores assassinadas pela intensa fornalha em que a atmosfera se transformara logo no início do flagelo. Apressou o passo porque todo feliz e esperançoso, criança quando ganha presente inesperado. Até não deu importância aos túmulos, todos de bocas abertas para o céu chumbo, poluído com nuvens ácidas, os túmulos sem ninguém. Quase o mesmo mágico do princípio das coisas: contentamento intraduzível, como quando criara o Homem. Poderia, sim, querendo, atingir o limite do campo-santo num átimo, bastando gestuais e abracadabras. Preferia o exercício intelectual inerente à caminhada, entretanto. Quem sabe o desgosto (que, não obstante a felicidade, ainda incrustado), o desgosto, vampiro sugando o sangue do espírito, terminaria por se convencer a voar embora mais depressa?

Andara e andara, e andando permanecia longa a distância. Próxima o bastante para que o casal de aves-do-paraíso, que se divertia cantando em cima do lajedo, sob os galhos das árvores funestas, evaporasse num segundo. Assustadiças. O mágico se permitiu escapar um sorriso desapontado. Por que fui conceder ao Destino, no instante em que o elaborei, a possibilidade de constituir casal com a Ironia? Excesso de preciosismo meu... menores requintes talvez facilitassem ao Homem compreender a vida... Se até as aves-do-paraíso fugiram...

Os dedos da mão direita, eles percorreram lentamente o mármore do jazigo. Gélido. Palavras e números atestavam o que já conhecia desde a primeira hora da eternidade: ali, seu próprio túmulo. Sequer a data de nascimento gravada. Mas o dia, o mês e o ano do óbito por todos decretado não faltavam. Ingratos! Mal-criados! Esbravejou a irritação e o inconformismo que haviam conseguido produzir um espantalho no jardim fértil de sua alma generosa. O gesto foi relâmpago: sentou-se na lápide como quem é cansaço. Suspiro carregado, típico da desilusão. Remexeu nos bolsos à procura. Num súbito fez nascer a cartola tão anciã que aposentada, de onde foram brotando objetos e substâncias e essências já fora de uso porque desde há muito exonerara-se voluntariamente da criação. Artes do desengano. Todavia... passando os olhos naquele quase completo aniquilamento em todos os quarteirões e mares da Terra, a misericórdia, paulatina, fez-se brotar. Não queria mais sentir tanto aquilo, onde o merecimento por parte deles?! Ao inverso, foram os responsáveis pelo mundo queimado, mortes, os ralos oceanos fervendo em bolhas, cadáveres haviam fugido das covas. Enquanto tais pensamentos brincavam de confundir seu espírito, manipulava os antigos ingredientes. Tédio e nenhuma vontade. Construir tudo novamente, desde a mais essencial criatura unicelular? Outra enésima oportunidade a eles? Sei não... E essas duzentas mágoas que estou sentindo desde quando fiz os Homens nascerem? Lógico, num alakazan eu as enforcaria, mas... será mesmo pretendo esquecer? Tenho um coração imensamente pai, ainda assim ele pouco parece disposto a anistiar ofensas tamanhas.

A procura por um ponto final nas obstinadas reticências da dúvida o fez entrar e sair inúmeras vezes, batendo portas, dos assombrados quartos que passaram a habitar seu espírito. Atitude baldia: as vozes interiores, intencionalmente emudecidas vozes, fingiam ignorância face à tamanha amargura. Como despertencessem a ele, tão mágico e ao mesmo tempo tão indeciso. Ao ancorar os olhos num dos galhos tortos do carvalho mais idoso, sua surpresa enxergou o casal de aves-do-paraíso materializando-se. Sem cantorias, entretanto. Uma luz interior se fez aplausos, de imediato. Foi como vários terremotos, sucessivos. É mágico! É lógico! A solução é evidente demais: se a raça humana que eu fiz redundou em flagrante malogro, o erro estava na primeira infância, após o sopro vital no boneco de argila, provavelmente... Pois tive imenso cuidado na elaboração da fórmula. Portanto, necessário conhecer a fundo o que vem a ser o princípio de uma existência, vivenciando-a antes da improvável recriação. Farei de mim a criança que nunca fui por absoluta falta de tempo, para conseguir perceber com transparente clareza em qual idade da infância humana cometi meu engano.

Seu entusiasmo ressuscitou frascos, cadinhos, pipetas, ampolas, balança de precisão. Mediu, pesou, considerou. Vejamos... estrelas em pó, não mais do que três gramas; luz solar em estado líquido, esse tanto é o bastante; última pitada, os aromas mais emocionantes do Éden. Pronto. Perfeito! Executado o gestual característico dos mágicos, ergueu aos quatro pontos cardeais a mistura, murmurou silencioso vocábulos mântricos e atirou a substância para o alto. No ar, transformou-se em poeira iluminada e descendo foi descer, cheirosa, sobre a cabeça dele. Os pássaros riram felicidades e puseram-se a cantar como nunca, como sempre gostariam caso jamais houvesse as mortes provocadas pelos humanos. Então uma sinfonia em todo o mundo, simultânea e linda, aconteceu.

O casal abandonou o carvalho para se empoleirar nos ombros daquela criança surgida, que era fascínio. Brincavam os três. Após pouco mais que um nada de tempo, várias nuvens de aves-do-paraíso pintaram cores no céu choroso. Vinham de todas as direções, cantantes. Organizaram uma incomensurável ciranda em torno do mágico menino, enquanto o mais afinado dos pássaros principiou a melodia da primeira canção construída pelo Homem para adormecer crianças. E o sono, como um velho que caminha devagar, o sono veio vindo... veio vindo... Dormiu sobre a lápide, embalado por tantas e doces notas musicais.

Sonhou seria pai. Um mundo de crianças aos seus pés, brincando e ao mesmo tempo pedindo bênçãos e sinceras desculpas pela vastidão de erros. Prometiam nunca repeti-los desde que concedesse uma vez mais o raro milagre de existir. Quando acordou, as palavras ditas por um dos meninos ainda reverberavam, vivas, atabalhoadas: "É mágico ser seu filho, pai... mágico é ser... pai, é mágico..."

Suas dúvidas de até então, a partir daí, se transformaram em sólida certeza: os ainda hipotéticos filhos precisariam, permitisse deixassem ser sonho, da concretude do mundo para entender a magia da vida. Mas será a última tentativa! Palavra! Hora, portanto, de voltar a crescer.

 

 

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