SUB-MISSA
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

A cerimônia começava.

No púlpito, o capelão. Nem baixo, nem alto. Rosto anguloso. Peruca ruiva que arrumava num gesto delicado e obsessivo. Tinha o queixo enterrado no peito, como se pudesse esconder o esgar que lhe rasgava os lábios. De sua boca não saía sangue, entretanto muitos sangravam. Era um perfurar dentro, enfiado nas entranhas. Suas palavras afiadas e certeiras atingiram alguns como um dardo.

Platéia tensa. Timorata.

Rezava a missa ao modo de quem representa uma tragédia de Ésquilo. Gestos demasiado caricatos, voz teatral e clara. Tempo psicológico - pausa necessária ao pouso das palavras no íntimo dos ouvintes. Matéria humana. Todavia, alguns nem escutavam sua voz, perdidos em redemoinhos internos.

Entre os fiéis, pessoas jovens. Mulheres altas e magras, peitos pontudos alheios ao discurso religioso. Outras amadurecidas, anuviadas pela preocupação, cavando coragem no solo pálido. Homens gordos, homens magros. Freiras amargas. Uma delas nova e triste, embora sorrisse.

Maria olhava a mulher de costas para ela, sentada no banco da frente. Os cabelos maltratados, adiposidade acumulada na cintura, braços espremidos no tecido grosseiro da blusa apertada. Rezava contrita. Ao lado, um rapaz bocejava entediado. À sua esquerda, Ana Luísa tentava dissimular o choro. Sabia que era seu último dia naquele grupo. Despedia-se.

O cônego prosseguia. Na boca, bailava aquele sorrisinho contido que tentava engolir. Pigarreava em momentos alternados. 'Hoje, de manhãzinha, enquanto fazia a poda na roseira do jardim, pensava no sermão que iria pregar. Podar é limpar, purificar. Uma a uma, ia arrancando as velhas rosas para que as novas tivessem espaço a fim de respirar e florescer. Assim é com os homens.'

Assim é com os homens. Assim é com os homens. A frase ecoou - foice ceifando homens-pétalas.Assim é com os homens. Frágeis e descartáveis. Ana Luísa, velhice antecipada, deixou escapar um soluço. O capelão olhou-a severo para compensar o riso sádico que controlava desde o princípio do culto.

Muitos se entreolharam, em silenciosa cumplicidade. A trágica condição de cada um se agudizou, ampliando a perplexidade do grupo. Pensamentos sombrios.

O terror estava disseminado.- Misericórdia, misericórdia!! Quase gritou Ana Luísa.Mas a palavra ficou entalada na garganta.

*****

A missa interminável chegou ao fim. Eternidade suficiente para revisar um ano, uma década, uma vida de entrega. Catarse. Enquanto muitos vertiam lágrimas, o capelão desceu as escadas do altar. Lépido. Tinha a pressa dos amantes, momentos antes do encontro com o outro. Para trás ficaram as jovens assustadas, as mulheres pálidas, as freiras solitárias, os homens de olhos úmidos.

 
 

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