O SÉTIMO PORTAL
Thaty Marcondes
 
 

Arian chegara ao último dos sete portais. Esperava sua prova, o teste, o exame final, para que pudesse abrir a porta do supremo conhecimento e, desta feita, tornar-se um grande sacerdote – seu sonho desde criança, nos campos de órfãos refugiados.

Tudo quieto. Apenas o suave bater das folhas entre si, causado pela brisa amena do final da tarde. O sol se fora, deixando a temperatura agradável. Sentou-se sobre uma pedra, para descansar e se refazer da jornada. Tomou alguns goles d'água cristalina, do seu cantil. Resolveu preparar-se mentalmente para o combate.

Rememorou sua jornada até ali. Acariciou cada cicatriz: 6, ao todo. Faltava apenas uma: a do sétimo portal do caminho da luz. Cada cicatriz uma lição, um degrau, uma qualidade alcançada. O que estaria por vir? No primeiro portal aprendeu como dominar suas emoções e eliminar os sentimentos mais vis; no segundo, sobre o equilíbrio, a tranquilidade de espírito, a paz, utilizando a meditação; no terceiro, sobre a amizade, fraternidade, solidariedade, o amor, até entender que somos todos iguais perante a criação divina, mas que temos que respeitar os diferentes; no quarto, aprendeu a perdoar os ignorantes e sobre seu dever de elucidá-los quanto à verdadeira sabedoria do conhecimento interno; no quinto portal entendeu os sentidos físicos e espirituais, as ligações, a qualidade de cada sentido humano, sobre os cheiros, as cores, etc. O que o aguardava agora? Súbito, sentiu que estava sendo observado. Ergueu os olhos e deparou-se com um homem sujo, enrolado em trapos. A própria miséria humana. Percebia-se as manchas de pus, ainda molhadas, de odor fétido. O cheiro era insuportável. A visão era horrível. O homem estava deformado. Lázaro personificado. Teve que se conter para não vomitar ou não cair em prantos, frente à visão estonteante de tamanha decadência humana. O homem, então retirou de suas vestes, enrolada, uma adaga de lâmina brilhante e afiada. Abaixou-se e colocou sua cabeça sobre uma pedra. Um verdadeiro altar de sacrifício. Não, Arian não poderia tirar-lhe a vida! Isso ia de frente contra todos os seus princípios, contra toda a sua doutrina. O homem começou a falar:

— Bom jovem, tira-me esse fardo, que isso já não é mais vida: é apenas dor! Me dê alívio, pra que eu possa conhecer a face do Senhor da Luz, pois não aguento mais esse mundo de trevas.

Arian então percebeu que o homem era cego.

— Como soube que tinha alguém aqui e me entregou essa arma?

— Desenvolvi vários sentidos, meu jovem. Entre eles, a percepção dos sentimentos, a vibração do ar. Ainda posso reconhecer os cheiros, os sabores, mas nada vejo e não sirvo mais pra ajudar ninguém. Portanto, minha jornada não faz mais sentido.

— Mas é contra a doutrina da luz tirar a vida de outrem.

— Muito bem colocadas, suas palavras, jovem neófito. Mas que vida eu tenho, se me falta ânimo, se me sobram dores e lamentos?

— Bom homem, você pode ainda orar pelos semelhantes, amenizar a ignorância dos menos esclarecidos. Há tanto a fazer neste mundo de injustiças e guerras!

— Há muito que você pode fazer, jovem, mas não eu, um pobre velho, andarilho repleto de chagas, sem enxergar a luz.

— Como você ficou assim, bom homem?

— Simples: atravessei os 6 portais, como você, até chegar aqui. Apareceu uma criança rastejando, sem pernas. Ela me ofereceu essa mesma adaga, e eu fiz como você: tentei amenizar seu sofrimento físico com palavras, deixando que seu espírito permanecesse preso à matéria descartável e inútil. A criança tentou me convencer, contou sua história, mas, diante de sua aparência tão pura, de sua sabedoria precoce, não acreditei que pudesse também ser um neófito. Não me convenci e me recusei terminantemente a executá-la.

O homem fez uma pausa e novamente estendeu a adaga para Arian, que ainda relutava.

— Meu jovem, ainda quer conversar? Ainda não entendeu o que o aguarda?

— Bom homem, como posso tirar a vida de um semelhante? A doutrina...

— Em que capítulo da doutrina você leu que não poderia dar fim ao sofrimento extremo de outra vida?

— Tenho receio de que você seja apenas uma tentação. Tenho medo de pagar por meu excesso de coragem, e que ele se transforme em soberba, me transfomrando em alguém que se achou detentor de direitos divinos sobre a vida e a morte. Não posso receber a vida de alguém em minhas mãos que ficarão sujas, maculadas com seu sangue.

— Jovem, você tem apenas mais uma chance de me livrar dessa desgraça. Já me negou a liberdade do espírito por duas vezes. Só lhe resta uma chance agora. Não queira se transformar em algo pior do que a visão que está ante seus olhos. Suplico: por favor!

Arian não pensou duas vezes: desferiu o golpe mortal contra o pobre moribundo sofredor. Ao invés de sangue, jorrou luz da separação da cabeça com o corpo, e o sétimo portal se abriu. Arian viu a placa de aviso: Portal da Piedade.

 
 

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