GIRASSOL - GIRA SÓ
Diogo de Castro Costa
 
 

Um rapaz, de olhos cerrados, traga displicente um cigarro no canto da boca. Ainda não se confidenciou como os outros; este foge dos olhares alheios, definitivamente não quer dizer nada, nem a si mesmo. Enquanto os outros refletiam as neuroses íntimas, o jovem rapaz prefere o sossego dentro da mente e, para tanto, apenas caminha. Um mundo de gente está ao seu redor, todos param e notam sua presença.

Por um instante a rodoviária contempla e silencia. Uma criança negra barrigudinha segue o ar de gravidade do homem, o miúdo chega a sentar no chão; o menino encontra graça nos sapatos amarelos do desconhecido, mas é ignorado. As crianças ficam frustradas mendigando atenção, os adultos se assustam com o semblante triste e cansado do jovem. O rapaz entra rapidamente no banheiro. A rodoviária retorna a tagarelar como um enxame de abelhas.

Entrou no banheiro, chutou uma bolinha de papel. Ele não conseguiu evitar, tampouco tem ânimo, chutou por seus sapatos serem grandes demais. Um chapéu azul camurça cinge-lhe a cabeça. O girassol de plástico na lapela indica a borla de sua profissão.

Um anônimo bêbado, sentado no canto do banheiro, suspira e tropeça nas palavras, ele se irrita por não falar e, com a língua entorpecida pelo conhaque, consegue articular alguns gritos:

- Palha! Ô palha, ô palhaço!... É surdo é? Hein palhaço? Não fume... Não fume não rapaz! Fuma na frente de criança? Hein? Hein? Fala! Isso é exemplo... Isso é exemplo que se dê pra criança seu palhaço?

O rapaz dobra as mangas do paletó escarlate e evita olhar o espelho; ele tira um lenço do bolso, molha a ponta do pano, e limpa vagarosamente a maquiagem branca do rosto. O palhaço lança o cigarro ao chão. O bêbado pega o cigarro e traga. Entre a fumaça do cigarro surge uma lembrança, uma mulher soturna lava roupa com uma garrafa de cachaça do lado, um garoto está de pé - ao lado da lavadeira - com uma das mãos na bochecha.

- O dente tá reclamando né menino... Vem cá que a mãe dá jeito. Abra a boca... Vixe - sussurra a lavadeira -, tá podre...

- Tá podre mamãe?

- Tá não, só tá doente... Abra a boca.

A lavadeira pega a garrafa de cachaça, desenrosca a tampa, abaixa a mão do pequeno garoto, e derrama um longo fio da bebida dentro de sua boca.

- Pronto, não cuspa não... Espera a dor passar, mas quando passar, só quando passar, cuspa o remédio, não engula não. Se engolir faz mal!

O garoto senta numa trouxa de roupa com as bochechas cheias, pára de chorar e engole a cachaça. Ele abaixa a cabeça, sorri de canto e afaga os joelhos com as mãos.

Como um espírito fujão, as recordações se dissolvem na fumaça do cigarro. Com a boca faltando alguns dentes, o bêbado sorri, amassa a bituca na parede, e esfrega as mãos nos joelhos. O bêbado reúne os últimos fôlegos de dignidade, se levanta do chão e fisga o girassol da lapela do palhaço.

- Êta cachaça brava dos Diabos, toda hora dá vontade de mijar!

O palhaço é indiferente ao bêbado, está visivelmente cansado, alivia o peso dos ombros se debruçando sobre a larga pia, respira profundamente e continua retirando a maquiagem do rosto. O bêbado ornamenta a orelha com o girassol de plástico e inicia um discurso:

- Já sei! Você é do circo daqui do lado da rodoviária... Vem filar a água né? Pois é, eu conheço bem aquela droga de circo... O dono do circo é um corno, é o pai da Cinha, já tracei mãe e filha. É verdade seu palhaço! Hoje estou bem e eles se danaram. A Cinha era a estrela do circo, era trapezista. E bem feito! Engravidou! Depois disso foi pro espaço a atração do circo! Não estou mentindo não, pergunta pra ela. Você sabe como é, trapezista pula de galho em galho...

O rapaz pára de molhar o rosto, mas continua com as mãos espalmadas sobre o granito. A torneira aberta enche a cova da pia, a água transborda tomando toda a extensão da bancada. Um rolo de papel higiênico se desmancha. O bêbado assiste a água caindo no chão e continua:

- É isso mermo, não gostou não? Fecha essa torneira aí rapá! O que é? Por acaso aquele hipopótamo é teu parente? É sua mãe?

Subitamente o rapaz saca um revólver e mira para a boca do bêbado.

- Palhaço anda armado? Que novidade é essa?

- O crime me criou, esse é meu disfarce... Agora que já sabe, só sai daqui morto!

- Até pode ser... Mas o hipopótamo é sua mãe é?

Como uma flecha de chumbo, o palhaço crava na boca do homem o cano do revólver.

- Não fala da mãe seu merda! Não fala porra!

O bêbado, de olhos entreabertos, fixa o olhar para as lâmpadas fluorescentes do teto, abre e fecha os olhos examinando a sujeira das lâmpadas. A água quebra o silêncio e ganha lentamente todo o chão. O palhaço empurra o cano da arma até o ponto mais profundo das entranhas guturais do bêbado.

- Olha pra mim seu desgraçado! Tá vendo o quê aí em cima?!

O condenado passa a rir debilmente, dos cantos da boca escorre saliva, persiste com olhar fixo para as lâmpadas. O rapaz engatilha o revólver e olha para o amplo espelho.

- Olha pra mim! Vamos! Tente olhar, tente! Olhe pra mim antes de morrer!

O bêbado de soslaio vê o rapaz refletido no espelho. Num pequeno espaço de tempo parece sair do estado letárgico do conhaque, ele se espanta com o que vê. O rapaz acompanha as reações do homem. Os dois se encaram no espelho com gradual sobressalto. O palhaço retira lentamente o cano da arma, a sua mão treme, mas permanece mirando.

- Pô palhaço, você se parece...

O rapaz se afasta e continua olhando para o homem com assombro.

- Parece comigo pra cacete! Se você é o filho da Cinha... Já deve ter uns vinte... É meu filho? - concluiu o bêbado.

Agora os dois já se fitam frente a frente. O bêbado tenta se aproximar, mas seu suposto filho continua com a arma apontada; descontrolado, a arma cai de sua mão, ele corre estabanado e sai do banheiro.

O bêbado se ajoelha e deita de lado. A arma está à sua frente. Ele abraça os joelhos, chora e sorri. O girassol bóia pelo chão. Uma barata foge do aguaceiro subindo pelas paredes.

Inusitadamente, um estampido ecoa. Foi um tiro. Apesar de parar e se assustar com a certeza do fato, o palhaço retorna a caminhar com os olhos desesperados; ele pende uma das mãos nos joelhos e não se entrega ao choro, a primeira seção da matinê o espera pra fazer rir as crianças. O palhaço confere seu disfarce escarlate e entra no circo.

- Um morreu sem saber se era pai, e outro pode ter visto o pai pela última vez - disse o velho zelador do banheiro.

O zelador, enquanto conferia um dos gabinetes, assistiu a discussão por uma fresta.

- Aqui é assim - retrucou o maduro homem -, tem literatura nas paredes, frases pornográficas aos montes, telefones pra contato, piadas, é a sala secreta das discussões, aqui os homens se igualam, é a democracia, é a sujeira das canetas nas paredes, é o tétrico espetáculo dos desejos reprimidos, é o...

- Tá falando sozinho velho? - disse o segurança da rodoviária entrando a passos largos. - Que merda é essa aqui? - se surpreende tropeçando no cadáver envolto na água tingida de sangue.

- Você matou esse cara?

- Eu não! - disse o zelador conferindo um dos botões de seu jaleco azul. - Ele se matou sozinho!

- Mas como? E esse berro?

- É, foi... É dele, é dele essa arma, não é de ninguém não.

- Tá escondendo de mim velho? Hein? E esse girassol aí? Era viado o cara?

- Sei lá, estou nervoso ora! Um louco se mata aqui e quer que eu fique como? Sou idoso rapaz, tenha mais respeito pelos mortos seu moleque! E não me chame de velho!

- Tá bom velho, fica na tua. Saia daqui. Vou chamar a polícia, anda! Anda! Anda... Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar...

Um rádio vermelho sobre o colo de Praxedes despende o volume no instante do samba de Cartola, a última ordem do segurança se mistura com a música.

O corpo do bêbado morto no chão, e a imagem do palhaço caminhando em direção ao circo, se dissolvem gradualmente como um vulto.

Despertando com a canção preferida, o velhinho espichou os olhos sonolentos para dentro do banheiro, e, sem sair da cadeira de praia vermelha, conferiu o chão.

- Só mais um retalho de sonho, só mais um pesadelo graças a Deus! - disse o zelador do banheiro. - Só me aparece fantasma aqui, era tudo fantasma! Já Clarice... Com Clarice o velho faria meninice, o moço viraria senhor, morrer de amor não seria sandice, ainda que Deus ouvisse meus suspiros de saudade, jamais entenderia, pois nunca foi girassol do sol chamado Clarice! E minha Clarice que não chega... E minha Clarice que não chega aos sonhos meus! Malditos quarenta anos de separação! Malditos sejam esses anos meus!

O zelador, após um minuto de desgosto, encosta a cabeça na parede e retorna a cochilar. O volume do rádio aumenta sozinho. O amor do passado entra em seus sonhos. A negra Clarice, entre névoas, de peito nu, veste apenas uma saia azul. Ela valsa solitária ostentando um girassol preso ao cabelo. O rádio vermelho desliga. O girassol cai no chão. Clarice pára de sorrir e de valsar. Um pequeno papel - talvez um haicai esquecido - navega num lago vermelho, e assim informa:

Girassol gira só,
Sem rio, num fio de água,
Gira só girassol.

Entre brumas Clarice desaparece. O velho zelador acorda, e por vergonha de mostrar os olhos encharcados tranca a tristeza na garganta.

Nos turbilhões da vida, nos desencontros e separações, em meio aos desconhecidos passantes do banheiro, existe o irmão tristonho - aquele cúmplice da roda-viva que nunca se conheceu; no rastro da viração, o haicai tenta virar Cordel; na mesma brisa que empurra o bilhete, o girassol flutua na lagoa de fel até os pés de seu novo palacete; o zelador se espanta com o que vê - mas não se trata de vertigem -, o girassol volta girando pra seu lugar de origem: junto com a prosa, ele bóia até atracar na arma perversa. Praxedes sai do gabinete e o Cordel regressa: pegar a arma ou o girassol? Qual decisão será correta? Por Clarice, Praxedes escolhe entre razão e tolice; ele segue pra pia e ignora o bêbado estatelado, junto com o sangue o Cordel ia descendo pelo ralo, e a prosa retorna enxuta num papel reciclado.

Praxerdes guarda o secreto objeto no bolso do jaleco. Ele sai do banheiro, senta na cadeira de praia e liga seu rádio. Uma silhueta embaçada aparece ao fim da rodoviária, é o segurança correndo em direção ao banheiro. Praxedes encosta a cabeça na parede e enfia a mão no bolso; ele afaga o objeto nas entranhas do jaleco e inicia um choro contido. - Girassol que gira só - diz ao vento a triste ironia -, girassol que gira só...

Praxedes se levanta da cadeira e permanece empunhando sua escolha dentro do bolso, dá alguns passos, e pára no meio da multidão; ele vislumbra o sol que invade o espaço vazio entre dois ônibus. O velho zelador sorri sem mostrar os dentes. Ele assiste o crepúsculo do sol. Praxedes tira a mão do bolso e dali, um girassol de plástico se desprende e desaba no chão.
 
 
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