A MORADORA DO PALACETE ENTRISTECIDO
Eduardo Selga
 
 

Desde quando o homicídio por ela encomendado tornou-se crime mesmo, jurou para si nunca mais sairia de lá, castelo dos seus sonhos e masmorra de sua alma, mansão esquecida num extremo de enseada, aos humores do oceano quase sempre intempestivo. O inquérito na Homicídios permaneceu inconcluso para sempre até ontem, graças à competência profissional do pistoleiro Zejão e às fortes influências políticas que seu falecido esposo, vítima, a ensinara cultivar. As fundamentais omissões e meias verdades compradas com muita calma. E muita cama. Corpo e língua maravilhosos que um dia possuiu. Mas os filhos, todos eles, seja pela tensão matrimonial nas semanas que antecederam, seja por seu comportamento algo teatro logo que o cadáver foi descoberto com cinco projéteis trezentos e oitenta, seus filhos optaram abandoná-la. Alguns adolescentes, outros ainda na infância. Não tinham da dúvida nem mesmo a sombra. Apenas por causa desse efeito colateral fora dos cálculos, amargura causada pelo abandono de quem se ama é um cancro sem remédio, por causa disso o arrependimento não tardou. Talvez menos ruim tolerar por mais algum tempo aquele marido asqueroso, que fedia a vagina de puta quando o término das madrugadas o vomitava casa adentro, sempre chorando remorsos pelas traições, jurando paixão infinita. Tivesse agido assim evitaria a infinitude de conviver diariamente ao lado da ausência. Seus verdadeiros amores pegaram a estrada, mala e cuia. Mas... entardeceu, impossível revogar a sentença de morte, a compra do assassinato. Cinqüenta anos bateram asas rumo ao Inferno. Sentia-se morta pela metade.

De todos os vinte e sete cômodos erguidos em épocas diversas, desde quando seus ancestrais levantaram os pilares... estilos os mais variados e sem qualquer lógica arquitetônica ou funcional a ponto de externamente assemelhar-se a vários caixotes encostados uns nos outros e sobrepostos, polígono irregular, no Palacete Entristecido (assim batizara o casarão após a tragédia doméstica) o que sua mágoa mais freqüentava de todos os vinte e sete cômodos era o quarto maior, onde coabitavam ela e suas misérias emocionais, numa triste harmonia. Universo paralelo, testemunha dos orgasmos verdadeiros dele e dos interpretados por ela; do exato instante em que a certeza serem casal feliz, ilusão apenas cultivada pelo marido, sofreu o primeiro sangramento. Leve, porém incicatrizável. Gangrenou da maneira mais fétida possível. Conseqüência, a vida dele amputada a tiros. Iniciaram-se então os fantasmagóricos dias... e dias... e dias... puro infortúnio traduzido em poeira grossa abraçando o mármore do piso, como um tapete. Aquele pó amarelo era o ontem, estado sólido, sobre o criado-mudo... a penteadeira... a cortina... o lustre... Teias num lado da cama, ainda descomposta e fedendo a marido, no qual por muitos anos sua vítima se fazia dormir, otimismo de menino, sempre hipnotizado pelo fogo do próprio amor sincero; nalgumas peças íntimas, vadias no lençol, no travesseiro, penduradas na cabeceira... as mesmas que sempre a deixavam aos olhos dele muito mais nua do que se nua estivesse; nos lábios sem outra boca disposta ao beijo; nos seios e vagina carentes de língua masculina o bastante para provocar marés e ondas de paixão. Que sacudiram num passado muito longínquo, saborosos maremotos devorando seu corpo na única vez em que sentiu atração sexual por alguém.

Tudo poeira. O quarto. Outros meandros da casa sem fim eram mesmo quase incógnitos, e já se esquecera, por exemplo, havia aposentos coloridos, reservados apenas aos carrinhos e bonecas das crianças sem cor após o homicídio. Filhos... Por que tamanha crueza comigo?!... Perguntassem!... Largaram-me aqui, morte a conta-gotas. E minhas justíssimas razões? Mãe, queremos saber, por favor sem mentiras, as causas do assassinato encomendado... Ora, santo Deus! Qualquer ódio, mesmo quando não tem todo o veneno da Serpente, tem raízes e tentáculos que só Jesus! Até jamais, senhora... Ou talvez voltemos no último dia. Quando a solidão encomendar sua morte vagarosa e dolorida, escreva-nos para que possamos presentear-lhe e quem sabe até flores pelos infinitos anos que nos deixará sem pai a todos nós.

O pavor (não, mais: fobia mesmo) sem remédio que impunha o jardim japonês também a matava aos poucos. Houvesse câncer no coração. O jardim maldito. Arquitetado mediante enorme carinho e paciência por ele ao longo dos seus últimos anos vivo apenas para presenteá-la, transformou-se à vista da escassa vizinhança em marca inequívoca dum presumido bom gosto e sensibilidade daquele casal com certeza harmonioso. Mulher pusilânime, semente genética fazendo nascer flores negras desde as mais remotas gerações da família, nunca teve forças para nem mesmo pôr os pés no horto. Paranóia? Seja! Manifestou-se tão logo a voz requintada e ao mesmo tempo sombria de Zejão informara, telefone, "serviço nos conformes, madame. Nenhuma chance de testemunhas. Qualquer noite passo aí... A outra parte do pagamento". Sim, o medo patológico da beleza florida daquele lugar. Porque à margem duma das várias estradinhas pavimentadas, seixos cuidadosamente escolhidos, yoga sobre gramíneas, meio lótus, outono e o noturno vento frio soprando as fragrâncias da praia, a idéia relampejou irresistível. Na verdade, e ainda hoje a impressão insiste, foi qualquer coisa semelhante a uma voz amiga, porém sem rosto definível, sussurrasse "é tão fácil o remédio para essa vidinha, esse inferno... Amor, mata ele! Profissionalmente, lógico". Seu pensamento observando, olhos de peixe morto, as carpas no lago, principiou a avaliar numa velocidade incomum as diversas alternativas possíveis.

Claro! Ótima a solução aconselhada! Lábios e pupilas sorriram quando a memória lembrou-se de Zejão, que, vinte e poucos anos lá atrás, ela mocinha e virgem, lhe prestara um serviço da mais alta qualidade. Desde a juventude sentimentos perversos costumavam, na solidão das horas insones, quando os próprios dedos alisavam-lhe os mamilos tensos e as intimidades ocultas pelos lingeries, costumavam deitar-se ao seu lado na cama, sorrisos e perfume agradabilíssimo, sugerir morte bem paga era troco ideal para contrariedades amorosas. E fazia alta a madrugada quando, durante um orgasmo sem prazer e sem homem que a comesse, a mesma idéia se lhe apresentou pela primeira vez, igualmente dourada e irrecusável. Nem remorso posterior houve. Embora ordenasse morte ao primeiro amor-desejo a invadir-lhe o peito e ocupar tempo da alma, cuja falência moral ensaiava seus primeiros indícios. Matar papai. Homem severo e macio e duro e excitante. Tesão! Porém... Os inúmeros olhares fêmea-no-cio, as insinuações diluídas em falsa ingenuidade, sorrisinhos maliciosos, transparências e decotes... Preferia ele ignorar a mulher precoce, faminta, cujos hormônios incandescentes não a deixavam em paz. Enxergava apenas a filhinha do papai. Como admitir tamanha indiferença? Acabou morrendo, fazer o quê? Ótimo assassino, o Zejão.

Há quanto vivia (ou morria?) sem sair do quarto casal, dormindo e acordando assombrada pela solidão-vampiro, sem tréguas? Perdera o fio do novelo no labirinto do tempo. Ainda assim, uma necessidade crescente ao longo dos últimos meses fazia-se império, mesmo nunca mais repetisse o gesto: abrir a porta, descer os centos degraus até pôr os pés na sala maior; vagar casarão afora sem a pressa característica dos que já traçaram seus rumos; surpreender, acidentalmente, novidades que sempre existiram. Nunca percebidas, porém. Talvez assim as últimas palavras das crianças, ininterrupta imagem-tortura, talvez fossem embora. Perturbar outra! Ao menos... por algum tempo. Lentidão ritual, extraiu sem ódio as teias que acentuavam sobremaneira suas incontáveis rugas; com dificuldade (memória, substância volátil...) lembrou-se onde mesmo habituara-se esconder aquele velho estojinho, maquiagem, mimo do pai. Carmim nas maçãs murchas, rosa nos lábios secos, delineador. Rebolado tosco, fora de época. E o luto (seda exausta, camisola mastigada pelas baratas) desceu corpo abaixo. Aos pés. Mostrando-se, seminudez, espelho em frente. Seios falecidos, cútis áspera. Espelho, espelho meu... existe alguém mais horrorosa do que eu? Odiou-se eternamente por dez minutos. O tempo preciso de tornar a vestir-se, refazer a imagem lamentável refletida sem misericórdia. Por que reflexos têm este hábito, verdadeiros demais? Um qualquer de mentirinha-gentileza não resultaria mal. Urgente, para esconder-se de si mesma, vestiu o longo. Aquele cetim vermelho-sangue. Jamais usara. Simples pirraça e deleite em machucá-lo, presenteada que foi pelo coração esposo, irremediavelmente enamorado. Perfumou-se, meticulosa, como quando se perfumava para beijar o pai quando ele ia dormir. Fez menção querer escova, lembrou-se a tempo: dos cabelos não havia mais quase nada.

Salto Luis XV. Toc-toc-toc ecoando no silêncio. Tentativa de elegância. Quatro, cinco passos. A maçaneta (quando mesmo fora usada pela última vez?), caíra em preguiças, relutava trabalhar. Mas conseguiu. Fechou suave a porta, numa lentidão de quem abre segredo secretíssimo. A necessidade ouvir, com a nitidez que impede equívocos, o clique da fechadura. Não quis, enquanto trancava seu esquife, o quarto, volver os olhos para o mundo onde vivera quase toda a vida depois do crime. Uma certeza sem provas, edificada com pressentimentos malcheirosos, mas nem por isso desagradáveis: nunca mais retornaria àquele purgatório. Última viagem pelo Palacete. Morrer. Finalmente. Bailar um padedê solteiro, comemoração? Ou... antes pelo contrário: e se a morte definitiva resolvesse não a visitar durante a caminhada pelo corredor, ou quando nos degraus? O Luis XV ecoava sempre no mesmo compasso silencioso, próprio a quem, pé ante pé, observa as minúcias do mundo em torno. No entanto, não percebia relevância nas deformações sofridas pelo corredor e provavelmente extensivas a toda a casa: não mais a arquitetura retangular; adquirira feições duma caverna. Umidade... alguns Celsius próximos a zero... Caminhava, pensamentos tão alheios que cegavam, sobre maciços irregulares de granito. Ora, se no corredor sempre carpete vinho!... Mas não via. Das rochas brotavam estalagmites, tais quais troncos grosseiros de árvores abortadas: assimétricas, sem encanto. Nas paredes, originalmente argamassa e coloridas com nítidas falsificações de surrealistas ignorados porque medíocres, pinturas rupestres. Da luminosidade baça, visível a partir do fim (ou do início?) da caverna-corredor, ventania. Rajadas. Em ritmo mais ou menos regular. Açoitavam a arquitetura daquela furna escura. Ricocheteando. Conseqüência, notas musicais agudas, bagunçadas. Não raro, redemoinhos. Que direcionavam poeira e vento gélido para debaixo do vestido de gala, pernas acima. Embrenhando-se calcinha adentro. Lamber a vagina murcha e há tempos não saboreada. Maravilhosa delícia reprimida, sentia. O primeiro homem entrando, fazendo, acontecendo, melando tudo. Lamentável não ter sido papai. Seu urro de mulher desvirginada voltou à memória. Nos lábios, traços de sorriso. Resíduos da velha malícia feminina?

O tempo duma vida medianamente extensa ela considerou ter gasto para atingir as escadas. Descer. Mas duas imagens domésticas fizeram-se obstáculos. Nó na garganta, peito em colapso, queria chorar, queria fugir. Urgente o último passeio pela mansão, contudo. Os olhos em panorâmica. Cujo ponto inicial na ante-sala, término no jardim japonês. A meio caminho do olhar, as inúmeras escadarias construídas no passado, levando a nenhum cômodo. Embora imensas. Algumas para sempre inconclusas. Os filhos. O esposo?! Pois não deveria estar morto e mastigado por todos os vermes da terra? Pois aquele estorvo ali, no jardim, jogando dominó e conversa fora com o homicida pago a peso de ouro. Zejão, seu traidor!

_ Filhos!... De volta!... Os anos escoaram e vocês no mesmo tamanho!... Ou será que... Impossível! O tempo na verdade não andou?!

A resposta foi a total indiferença. Exceto a menina, que por longos minutos observou a mãe como um delegado que, enquanto ouve o suspeito, elabora mentalmente a próxima pergunta para flagrá-lo em contradição. Sorriu um sorriso monalisa, retomou seu tricô. Seria um xale vermelho-sangue, manufaturado com esmero (mas não carinho), a título de presente. Os meninos, vários, surdos ao apelo, continuavam impassíveis na tarefa de organizar o buquê. Flores plásticas, germinadas no lodaçal das mágoas que o assassinato provocou.

Tamanha insensibilidade a entristeceu. Chamou por eles outras vezes. Inútil. Sentiu-se insultada como jamais na vida. Desviou o olhar, e à direita, no jardim, os dois cumprimentaram-na muito sorridentes. Palmas, entusiasmo, não sem antes entrechocarem as taças. Vinho. Tinto seco. Parabéns!!! Riram-se muito, sarcasmo que machuca muito. Eram a imagem da felicidade.

_ Lembra-se eu disse voltaria para cobrar a outra parte do pagamento? Sei, minha idéia no começo era mesmo o sabor daquele corpo que você teve. Mas, tantos anos... a velhice... morri numa armadilha preparada por você... Então mudei a idéia. E aqui estamos.

Centenas e quilômetros de imagens voaram pela lembrança, e ela ria e ela chorava, sem o antigo e inflexível domínio que possuía sobre as próprias emoções. À esquerda, os filhinhos; à direita, dois fantasmas risonhos: assassinado e assassino, unidos no intuito de enlouquecê-la. E teria sido obra da insanidade ouvir o uníssono gargalhante, macabro mesmo, exigindo "morre! Morre!"?

Hesitou alguns momentos, mas, como se a decisão já estivesse incorporada à alma desde quando saíra do quarto, atirou-se escada abaixo, trezentos degraus. Morrendo em direção aos principais personagens de sua história. Mas o pai, grande amor, não estava. Chegou em frangalhos, sangue misturado à cor do vestido, falecida como na verdade desejava. E precisava. Porque a pior morte era aquela na qual vivia, meio morta, meio viva.

Serpentinas. Apitos estridentes. Todos, os filhos e o marido e o pistoleiro, abraçaram-se numa confissão de alegria raramente experimentada por qualquer um deles quando vivos. Agora sim, talvez pudessem descansar na santa paz do Senhor. Inclusive Zejão, já perdoado pela vítima, de quem se tornara grande amigo e confessor das mais bem guardadas intimidades.

Foi envolvida no xale. Jogaram as flores por sobre. O Palacete ruiu em segundos e sem qualquer estrondo, como fosse erguido a partir de cartas de baralho. E todos os mortos foram felizes para sempre. Exceto ela.

 

 
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