VIÚVA-NEGRA
Raymundo Silveira
 
 

O trem de pouso beijou o chão de Fortaleza pontualmente às seis da manhã. Depois de deslizar na pista, a aeronave taxiou por alguns minutos e parou diante do terminal. Entre os passageiros uma jovem alta, elegante, bonita, morena, nariz afilado, lábios finos, traços típicos de uma européia do mediterrâneo. Não era. Só conhecia a Europa e o resto do mundo, graças ao sucesso. Filha de pequenos comerciantes cearenses, ascendera socialmente como modelo. O primo a esperava. Mas ainda custava a crer. Pelo telefone, pedira para ir recepcioná-la no aeroporto. Tinha quase certeza: tratava-se de um trote. Como podia não ser, encontrava-se ali. Haviam se comunicado quando crianças. Ele a conhecia como todo mundo conhece uma atriz famosa: através de imagens.

Desprezou o fusca na garagem e alugou o carro mais luxuoso da locadora, pela metade do salário. Encontro quase caloroso, graças à iniciativa dela. Durante o trajeto para o hotel mal falava. Ora se via como um motorista privilegiado, ora como um príncipe encantado. Entre estes extremos, um oceano de pensamentos. Uma onda se destacava em forma de pergunta: por quê? Nenhuma resposta fazia sentido. No hotel, esboçou uma despedida. Ela simulou não perceber e convidou-o para o apartamento.

Ó, tormentosa assimetria dos valores humanos! De quanto sois capaz! O reino da Terra é semelhante a um tesouro escondido no campo: o homem, que o achou, esconde-o, e, não cabendo em si de alegria, vai, vende o que tem, e compra aquele campo. Só que não são todos iguais. Há alguns campos mais iguais do que outros. Há homens (e mulheres) que acham tesouros maiores, outros menores. Outros ainda, não acham nenhum. Na noite anterior tinha humilhado a companheira pobre, vangloriando-se do papel que desempenharia naquela manhã para atender um pedido pessoal da prima famosa. Agora, cogitava de desmanchar o noivado.

Terceira filha de uma série de doze, a noiva deixou a roça para vir estudar na capital, morando de favor em casa de parentes afastados. Incapaz de se manter sem trabalhar, assumiu função subalterna num Banco, durante o dia, freqüentando, à noite, um cursinho pré-vestibular de Direito. O noivo era colega de turma. Tudo o quanto havia em comum entre os dois, parava por aí. Ambicioso, egocêntrico, portador de inteligência mediana, narcisista, aceitava a paixão da colega como se fizesse favor. Pedia, inclusive, dinheiro emprestado e não pagava. Desde a noite daquela humilhação, nunca mais falou com ela.

Trazia uma bomba-relógio. Impossível abafar os acordes daquela ópera de horror. Libreto escandaloso escrito a quatro mãos. Apenas as dela seriam responsabilizadas. Pensou em voltar pra casa: estoque de inimigos potenciais, prontos para consumi-la. Nas ruas, hostilidade nos semblantes. Em cada transeunte um juiz, um acusador. Não tinha muito tempo, apenas dois. Três meses de gravidez. E o outro: chuvoso, com trovoadas e ventanias. Arroto do mundo em plena face.

Só. Completamente sozinha. Se havia um Deus por companhia, tinha ido lá fora. Ou se comunicava através de uma linguagem sobre-humana. Nada enxergava em redor. A não ser pencas de abandono, mares de desamparo, poças de reprovação e uns restos apodrecidos de ilusão. Trazia os olhos inchados de chorar implorando uma esmola de solidariedade, e nunca chegava. Esperançou sonhos e angariou pesadelos. Cuidou cerzir a alma esgarçada com a linha de seda dos bons propósitos, mas os bordos já se encontravam friáveis devido às necroses de solidão. Os grãos de mostarda que esparziu caíram em terreno infecundo. Ou há muito já estavam engelhados, por terem sido armazenados em silos sufocados de desespero.

O Deus, cuja ausência agora sentia, perguntou: "E então, o que fizeste da tua vida?" Deixe-me ver. Primeiro vou dizer o que não fiz. Não freqüentei escolas pagas com dinheiro. Tive de aprender no educandário de dona Vida, excelente professora, por sinal. Ensina muito bem. Mas cobra caro. Não só os olhos da cara, como também todos os outros olhos. Disseram-me que eu não era gente fina, então me acomodei. Escondi os meus talentos. Renunciei a quaisquer direitos humanos. Aliás, nunca soube direito quais são esses direitos. Embora digam hoje: já tens até direito de estudar Direito... Sei apenas terem sido proclamados por homens machos debaixo de um Amazonas de sangue. No entanto, jamais foram concedidos, a não ser a uns poucos privilegiados. Não fiz guerras. Não escrevi, não pintei, nem esculpi quaisquer obras primas. Nem inventei ou descobri nada importante para o bem da humanidade. Nem sequer uma daquelas bombinhas desintegradoras de gente, deixando as coisas intactas...

O que fez da sua vida? Nada! Fizeram. Nasceu com um corpo especial... Diferente. Feito aqueles tipos de terra onde em se plantando, tudo dá. Também plantaram nela. Mas tudo o quanto deu haveria de ser arrancado à força bruta, pois do contrário teria de colher sozinha. E isto estava além das suas forças. Corpo singular... Paradoxal. Todos querem, poucos protegem. Alguns profanam... Violentam. Como a Lua, passa por diferentes fases. Durante o plenilúnio, fascina. É tema de poesia. Poetas cantam poemas lindos. Minguante (ou crescente), não atrai. Ninguém cuida, ninguém olha, poucos se interessam. É também como as roseiras. Mas, ao contrário delas, não existe nenhum romantismo durante o período de floração. Nenhuma beleza. Algumas vezes os espinhos magoam tanto que, em vez de brotar flores, verte lágrimas de sangue. Poucos tomam conhecimento. Ninguém trata de protegê-lo. O que mais doía era ver o corpo como se encontrava agora. Nada podia ser planejado. Tudo imprevisível. Quando mais precisava de cuidados, os próprios pais a rejeitariam. Tinha de se virar sozinha. Sem ter com quem contar, decidiu mandar arrancar, à força bruta, a semente em plena eclosão. Nem por um segundo cogitou de recorrer ao pai do seu filho.

Enquanto isso, o ex-noivo raciocinava: Balzac tinha razão. As mulheres são como estufas cobertas de mármore. A dissimulada frieza externa, jamais reflete o calor acumulado no âmago de suas almas. Não há como falar em leviandade. É da sua índole passar da paixão mais arrebatadora para o gelo da indiferença, da noite para o dia. Os sentimentos afetivos variam ao sabor de interesses imediatos. Como se a natureza as quisesse poupar de mais violência. Teria de ser assim, ou a espécie humana sucumbiria. Pois são fontes reprodutoras primordiais... Só assim entendia o silêncio da ex-amante e racionalizava, perante a consciência, o próprio cinismo.

Foram quatro dias e quatro noites sem saírem daquele hotel - ilha da fantasia. Combinaram se encontrar em São Paulo. A prima era uma espécie de viúva-negra ninfomaníaca e sedutora. Praticava sexo tantas vezes ao dia quantas oportunidades existissem. Não importava com quem, locais ou circunstâncias... Fazia sexo real, cibernético, telefônico, sob todas as modalidades concebíveis ou não. E se masturbava compulsivamente. Durante as transas gemia e gritava alucinadamente a ponto de atrair a atenção de terceiros. Havia, contudo, um aspecto ainda mais bizarro. Uma vez atingido o orgasmo era possuída por uma fúria demoníaca contra os parceiros. Só não entrava em luta corpo a corpo devido à fragilidade física própria do seu gênero. Mas as agressões morais, humilhações, achincalhes causavam tanto constrangimento a ponto de afastá-los. Fugiam apavorados e arrependidos por terem se deixado apanhar naquela armadilha. O poder de sedução, entretanto, era extraordinário. Utilizava as artimanhas mais diversas para lograr seu intento. Era, inclusive, capaz de se conter em curto prazo, para depois desferir um golpe mortal. Fingia arrebatamento, ardor, paixão. Simulava estar sendo vítima de violência física e coação psicológica por parte de outro amante. Assim, atirava uns contra os outros.

Era menos ré do que vítima. Infância assolada por trágicos acontecimentos. Alvo de abuso sexual desde os cinco anos e, afinal, estuprada aos doze. Pelo próprio pai. A mãe não acreditava: te cala, mentirosa. O desenvolvimento psicológico foi, portanto, marcado pelo pavor, complexo de culpa, sensação de abandono. Era, enfim, muito doente. A revolta contra os homens era o resultado de repulsa vingativa e inconsciente contra o pai. O primo, intelectualmente medíocre e emocionalmente imaturo, de nada desconfiou. Largou tudo e se mandou pra São Paulo. Nem perdeu tempo para escutar, por alguns instantes, os prudentes discursos do silêncio.

No dia anterior ao da chegada dele, estivera a tarde inteira num motel a transar simultaneamente com três assaltantes. Sete da noite em Cumbica. O vôo estava previsto para chegar às nove. Enquanto aguardava, deu alguns telefonemas. Quando o primo assomou no saguão do aeroporto correram e se abraçaram. A seguir, conduziu-o ao automóvel, uma picape cabine dupla. Assumiu o volante e partiu. Durante o percurso assistia, em tamanho ampliado, a tudo o quanto já estava acostumado a ver ao natural. Pessoas encharcadas de miséria dormitando sobre as calçadas. Outras, como eles dois, flutuando sobre quatro rodas a sua indiferença. Logradouros, pontes, canteiros, viadutos, elevados, espigões acenando duvidosos bem-vindos pela voz calada do concreto. Praças enfartadas pela isquemia das artérias revestidas de asfalto e obstruídas pelos trombos dos engarrafamentos.

Estacionou junto a um terreno baldio, dizendo se tratar de uma emergência sexual. Transaram ali mesmo. Todos os vidros alevantados, o motor funcionando e o ar condicionado a mil. Depois, percebeu bandidos vindo em sua direção. Um deles encostou uma arma na cabeça... Um pesadelo... Um alívio, ao despertar. Na cama, continuava sentindo, no ouvido, a pressão de algo semelhante ao cano frio de um revólver. Ainda tentou se virar. Não escutou estampido algum...

 
 

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