SOBRE TER INICIATIVA
Samuel Silva
 
 

Acordou naturalmente naquele fim de manhã, sem despertador ou outros ruídos. Aquele quebrara ontem, friamente, após decidir que lhe fazia mal o trinado matutino em quase todo dia. Os outros afastados pelas janelas fechadas. O pouco de som que vinha de fora era abafado pelo rumorejar do ar condicionado. Na penumbra proporcionada pelas cortinas de blecaute ele piscou várias vezes para dar tempo à consciência, retomar a mente ao ponto em que a deixara ontem de noite. Um profundo suspiro de total relaxamento e ele se levantou da cama, despreocupado de hora e arrumações.

De cueca e camisa velha foi até a cozinha e passou um café na cafeteira elétrica como se cumprisse um ritual. De caneca na mão, abriu a porta e pegou o jornal que o proteiro deixara na soleira do apartamento, sabendo que não queria ler as notícias, só o horóscopo, que leu displicente, signo a signo, sem se dar ao trabalho de memorizar qualquer dos prognósticos do astrólogo.

O café suprimiu o travo amargo do vinho barato que tomara no jantar com a ex-esposa, apenas para os acertamentos finais do divórcio, assinado e homologado perante o juiz poucos dias antes. Como em todo divórcio, restaram alguns pontinhos da relação para serem acertados e que não cabiam em petições e arengas judiciais, ainda mais quando fora pedido consensual; coisas de pequena monta, diminutos resgates de mágoas passadas que se disfarçavam de sincero perdão recíproco.

Agradeceu mesmo a gentileza de Maria de deixá-lo almoçar com as filhas fora dos dias acertados no regime de visitas, uma pequena concessão após a rendição, em troca dos bens renunciados e da graúda pensão fixada, com a ressalva expressa de que no futuro ele só veria as meninas nas condições judiciais, bastante restritivas, por força do retrato colorido e pouco meritório que dele pintaram a Maria, as testemunhas, a assistente social e a psicóloga forense. Ele, pouco afeito às ciências humanas e psicologismos, surpreendeu-se com a quantidade de síndromes, distúrbios e psicopatias que podiam assacar a um ser humano, no caso ele mesmo.

Na sala, viu a pasta largada no chão, alguns papéis saindo pelos cantos, entre eles o malquerido termo de rescisão de contrato de trabalho e a indignificante guia de seguro-desemprego.

Quase riu ao lembrar daquela repisada história de que o ideograma chinês que significava "crise" era o mesmo de "oportunidade", que na ultima semana fora repetida para ele dezenas de vezes em e-mails, telefonemas e constrangidas conversas com ex-colegas de trabalho. Nunca gostara daquele papo motivacional de recursos humanos, sempre encarara de modo cínico as dinâmicas, os quadros de aviso, as circulares e todos os instrumentos criados para "levantar o astral" de quem levava uma porrada da vida. Vida é assim, uma porrada aqui, um beijo ali, vida que segue e nada se podia fazer sobre isso, essa sempre fora sua filosofia...De vida.

Acabou o café, foi escovar os dentes, se viu obrigado a olhar-se no espelho. A barba por fazer. A cicatriz na testa daquele acidente de moto que o deixou na uti por mais de uma semana. A cicatriz no pescoço, outra uti, mais longa, com direito a uma coma. Lembrar disso tirou a poeira de outras recordações hospitalares. Aquela crise alérgica. A operação de apêndice supurado.

Nestes momentos achou que iria morrer, que estava frente à frente com a morte, com seu destino final, mas sempre seguia, sempre haveria uma outra vez.

Olhando-se ali no espelho, resolveu que a tudo burlaria: à justiça, à ex-mulher, aos amigos, parentes, todos...Até aos médicos e hospitais...

Voltou para o quarto, despiu-se, abriu a janela do quarto, deixando entrar o ar e o burburinho da cidade. Daquela altura, via longe por entre os prédios, ruas, o céu azul de sol forte.

Viu seu horizonte estreitar, a calçada se aproximar e sorriu o sorriso ao sucesso, a todos burlaria, até à vida, até à morte, que não escolheria nem o dia, hora e local de o levar.

O último encontro deles seria marcado na sua agenda, não da ceifadora.

Não sentiu dor, nada.

 
 

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