POR UM MUNDO DE PAZ
Luiz Carlos Rufo
 
 

"É como água no alho (?)", de certo, o tal escrivão, estivesse referindo-se aos vampiros, sei lá.

Olhamos, veementes, guerra, injustiça, discriminação entre irmãos. Por nossa observação monocular e atônita -pré-fabricada- condenamos; colocamo-nos em degrau um pouco acima, intocáveis: "O homem é ruim", concluímos. Mas, isto tudo, rui; em um único dia claro, sucumbimos e passamos a fazer parte integrante de um fenômeno displicente, argucioso e que nos comove. Em um arroubo de raiva, vingança por tudo já presenciado, explodimos. Desconhecemo-nos diante de nós; nesta hora o espelho, olhos de dentro, nada diz. Sendo assim podemos ferir com palavras, ofender com gestos e punhos e , pasme, até matar.


Ele explica ao amigo, com franqueza, as vantagens de um mundo, mais tranqüilo, sem a exuberância e a insânia do transporte individual.

Procura usar melhor a palavra quando refere-se ao estilo sedentário da atualidade; ao estímulo a preguiça embutida nos rótulos e referências do consumo; as propostas para agentes modificadores do cidadão já mal-acostumado, malevolente e apressado, gerador contumaz de conseqüências sempre destinadas ao seu próximo; articulador obsessivo da prédica publicitária de um viver-bem e que portanto, no seu entender, um estorvo a ser proibido.

Usou de cautela diante dos padrões, evidentes, seguidos sempre a risca pelo amigo. "Para começar, você poderia ir descrevendo este mundo para mim?", replica, incrédulo, como se o outro estivesse a falar sobre obra de ficção.

Os dois andam apressados pelas ruas abarrotadas e barulhentas do centro da cidade. Procuram onde achar equipamentos para os desígnios da informática, porém frustrados pela qualidade oferecida dos achados, dirigem-se, aborrecidos, para o estacionamento.

"O transporte público emprega mais que a indústria de carros", emenda para o amigo enquanto evita o atropelamento de ambos por um motorista apressado gritando algo ofensivo e tresloucado. A passos largos e observando um molho de chaves na mão do amigo procura o veículo. Ofegante continua a proza. " O metrô apenas faz parte da equação de solução. O transmilênio é uma possibilidade a ser considerada, você tem que entender".

O amigo introduz a chave certa no contato. Dá a partida. Com o pé esquerdo num dos três pedais, engata a alavanca e ruma, lentamente, para a saída. Observa que o céu esta encoberto, porém claro, e num momento de decisão procura completar algo com a voz, volta o rosto para a frente do carro e percebe, espantado, a abalroadela no carro que passava em sua frente, lentamente em rota predestinada para colisão. "Filho da puta!", socando o volante. " Não olha, não!".Gesticulando muito em movimentos apaziguadores, "Tenha calma e só um lata amassada , ninguém se feriu", falou o outro.

Por segundos todos entre olhares embranquecendo aos poucos. "Porra! tá maluco...", gritou de lá o motorista. "Ainda por cima ignorante.", assentiu o amigo espargindo cuspe no rosto do outro calmo. Dentro do veículo abalroado o motorista está paralisado, em sua mente muitas coisas passam rapidamente, nenhuma se firma, os olhos ficam fixos no motorista agressor. Suas dívidas financeiras o perturbam de uma maneira especialmente diferente agora. A sensação é de total desamparo. Lembra, com um certo alívio, que ao seu lado esta o amigo de infância, excelso e corpulento, representante encarnado da milícia romana, um tipo defensor de todos os interesses alheios. Suspira, e por um instante sabe da importância em tê-lo ao lado.

O companheiro romano sua em bicas, sente oprimido o peito dentro do carro pequeno, seu corpo vai além do razoável preocupando-o sobremaneira; "Sua pressão o faz sofrer devido ao peso...", disse-lhe o médico. Suas veias fervem, os olhos ejetam uma luz radiante e boçal, "Êh, ele precisa de você", a voz sorrateira sai dos meandros de seu cérebro. Os negócios, a dificuldade de ereção, o abandono prematuro por sua mulher Liza num repente subiu à fronte, latejando. Uma vertigem estacionária aos olhos desafia sua predisposição heróica. Salta rapidamente e parte para cima do motorista agressor. Como um besouro calcário brusco, avança lerdo, arrastando sua carapaça. O besouro avançava decidido. O amigo bradou: "Você é ignorante, não vê que não houve intenção?", "O seguro cobrirá". Algo aconteceu e o mamute estancou, bufou, praguejou, mas agora, impedido em seu trajeto, sua energia disponível para a raiva voltava-se lentamente para as profundezas dele mesmo, sentiu um frio estranho e seus tornozelos falharam. Voltou rápido, cambaleante, para o carro. Junto de si o medo aterrorizante de uma morte súbita.

"Será necessário uma delegacia", arranhou, pelo rádio, uma voz feminina. Saíram em peregrinação, deixando os carros onde estavam. Junto ao escrivão o romano defensor, agora recuperado, desculpa-se com o outro e, inexplicavelmente, chora.

 
 

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