CARTAS À MESA
Tiago Velasco
 
 

Abri a carta. Não tinha remetente. Eu conhecia aquela letra. No texto, um pedido. Pelo tom, quase uma ordem. Poucas palavras. Concordo. Funciona como um estímulo. Como o estopim. Era um conselho. O bilhete pedia para eu me matar. Sábias linhas.

O psiquiatra dizia que eu tinha personalidade múltipla. Múltipla é o caralho. Reajo de forma diferente a estímulos diferentes. Receita comprimidos, o filho da puta. Bolinhas de várias cores. A amarela é para deixar o meu pau mole. Tenho certeza. Ele falou que o meu problema vem da infância com os meus pais. É um homem sério. Estuda bastante. Confio no doutor.

Depressão. Apenas uma das doenças modernas que tenho. Elas vêm aos borbotões. Às vezes, até em siglas. O psiquiatra tenta me ajudar. Prescreve várias fórmulas. Não sei se todas são boas. Tenho 90% de certeza que tomo placebo. Acho que ele tem um acordo com o cara da farmácia. Charlatão. Não saio mais de casa. Não é bem assim, mas é quase.

Costumo freqüentar o consultório do psiquiatra. Antes de ir, ligo para saber se ele está atrasado ou se tem fila de espera. É perto de onde moro. Vou quando ele termina a sessão anterior à minha. Não gosto de esperar. Ele entende. É um homem muito compreensivo. Só fico puto com esse papo de múltipla personalidade.

Olho para o pedido do bilhete. Vou providenciar uma pistola. Homem se mata à bala; mulher, a comprimido. Leio tudo sobre isso. E também sobre pressão sangüínea, dieta, coração, lançamentos vitamínicos. A gente precisa de muitas vitaminas para suportar a tensão diária. Eu já tentei todas e ainda não me sinto bem. Não sei, é algo que não controlo. O psiquiatra diz que quero ter controle sobre tudo. Do jeito que fala, parece receita de bolo. Dinheiro fácil. Enganador.

Encomendei minha arma pela internet. A vida moderna tem muitas facilidades. Não consigo pensar como seria viver sem toda essa tecnologia. Há 50 anos, devia ser muito ruim. As pessoas morriam por qualquer doença. Os comprimidos que tomo não existiam. O meu psiquiatra entende o homem contemporâneo, mas eu não posso falar para ele do suicídio. Ele sempre me convence do contrário. Ainda bem que recebi essa carta - é um pedido, ou melhor, uma ordem. Não tem remetente, mas conheço a letra.

A pistola chegou. Bonita, brilha. Tem um pente para mais de uma dezena de balas. Não preciso disso tudo. Um projétil na cabeça, e os miolos voam a um par de metros adiante. Leio o manual de instruções. Simples. Coloco uma bala apenas. Sento no sofá. Despeço-me das vozes internas.

PÁ.

Depois de uma semana sem notícias, ela entrou no apartamento do filho. Fedia muito. Ele estava sobre o sofá. O sangue, seco. A cabeça, com um rombo, pendia para o lado esquerdo. Desesperou-se. Perguntava a Deus o porquê. Não tinha resposta. Sobre a mesa, duas cartas. Uma aberta e outra fechada. Pegou a aberta. Não tinha remetente. Era o pedido para que o filho se matasse. Abriu a outra. Não tinha remetente. Era a mesma letra. Nesta, um suicida se despedia da vida e dos familiares. Ela reconheceu a letra das cartas. E reconheceria em todas as circunstâncias. Coisa de mãe.

 
 
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