MOSCA MORTA... E ANETE DIANTE DELA
Leo Agapejev de Andrade
 
 

Uma mosca que imperceptivelmente vai virando pó. A cor da urina sobre o fundo branco dos azulejos. Baixar música pela net. E a Anete pegando fogo quando acidentalmente derrubou cachaça na manga da blusa: um pouco bêbada (como todos nós), ao trazer o copo para si, roçou a manga na chama da vela, que acendêramos devido ao blecaute daquele noite terrível. Que me despertou para o fascínio da aventura humana sobre a terra.

Diante do inesperado, alguns travam e outros se descontrolam, mas todos demonstram fraquezas não-exibíveis em situações minimamente controláveis, como um ônibus pronto para deixar o ponto sem um passageiro desesperadamente atrasado para um compromisso ou irritavelmente cansado e faminto. Anete mostrou as suas fraquezas.

Jogou o resto de cachaça na manga, na tentativa de apagar a chama, mas realimentou-a ainda mais. Mordeu os lábios, apertou os olhos e deu tapinhas no fogo; ou melhor, simulou-os. Acabou é derrubando o porta-retratos da estante ao lado, tropeçou no fio do telefone, colocado no sofá para uma conversa demorada e picante na noite anterior ¾ mas não gritou. Nem um pio. Apenas alguns gemidos surdos que demonstravam respiração forçada e um nó na garganta. Mas não gritou, nem sequer fez sinal de que gritaria.

Isso surpreendeu a todos. Era de se esperar que Anete gritasse, e muito, numa situação dessas. Conhecíamos Anete, era nossa colega de trabalho há uns 3 anos, e sempre nos reuníamos na casa de um de nós antes do recesso de festas de fim de ano. Ora, sabíamos -- tanto os homens quanto as mulheres que estavam presentes -- que uma mulher gritaria numa situação daquelas, em que sua vida estivesse seriamente ameaçada. O zelo pela vida e a tendência para pensamentos catastróficos era algo que nós, homens, sempre notamos no comportamento feminino. Ainda que sua confirmação dependesse de mais alguns exemplos práticos que os vistos uma ou duas vezes durante uma vida de cerca de 30 anos. Assim, era de se esperar que qualquer mulher soltaria seus agudos para tentar apagar um fogo que lhe subisse pela manga da blusa.

Mas não Anete, pelo visto.

Sua reação me veio como a decomposição da mosca em minha mesa de trabalho. Matei uma mosca, certa vez, e deixei-a em cima de minha mesa. Passaram-se meses, e a mosca continuava intacta. Nada de bichinhos brotando de sua carcaça, nada de murchar. Depois de uns 10 meses, tirei-a do esconderijo embaixo do escaninho e recusei-me a ver sua morte interminável. Joguei-a no lixo. A atitude de Anete teve também o impacto o fascínio que o contraste da urina amarelo-clara sobre o azulejo branco do box do banheiro me causou. Havia um algo de atraente naquelas três situações desagradáveis num primeiro juízo. O choque causado por Anete desesperadamente silenciosa e fraca paralisou a todos. Não se sabia a medida da reação cabível, nem se a reação esperada realmente viesse em algum momento ¾ de preferência, antes que Anete ardesse em chamas e levasse com ela as nossa vidas e todo o apartamento. Daí o espanto: alguns gritinhos histéricos, poucos que fossem, poderiam certamente dar a deixa para um princípio de reação. Mas Anete não gritou, e simplesmente não sabíamos o que fazer.

E ninguém fez nada. Espantados, babávamos sobre os nossos próprios copos de cachaça. Ninguém nem mesmo esperava que o outro acudisse, estávamos presos à reação de Anete, que em pouquíssimo tempo estava com fogo nos cabelos (abaixara a cabeça ao tropeçar no fio do telefone, e a chama passou dos braços aos cabelos). Anete apenas resfolegava, cada vez mais intensamente, até cair no chão.

Bem, o final disso tudo eu não vi, pois saí rápido do apartamento dizendo que não poderia perder o ônibus das 23h; mas os amigos acabaram levando Anete ao hospital, ela saiu algumas horas depois e acabou perdendo um tufo de cabelo e teve queimaduras leves nos braços, a serem tratadas com pomadas. A cena toda, que durara pouco mais de dois minutos, mostrou-nos como alguém pode superar facilmente nossas expectativas.

Anete é mesmo surpreendente.

 
 
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