PÊRAS E PÊSSEGOS
Luís Augusto Marcelino
 

Nunca fui suficientemente ousado para me aproximar de uma mulher no primeiro encontro, apresentar-me, convidá-la para dançar ou estender-lhe um tapete vermelho por onde passava. Nem suficientemente tímido para deixar de reparar na beleza das moçoilas que passavam ali em frente à banca de frutas do meu tio Genésio, próxima à Rua Albion, na Lapa paulista. Era pequena, a banca. Não mais do que cinco metros de largura, onde acomodávamos maçãs robustas - tanto as vermelhas quanto as verdes -, pêras, melancias, melões. Às vezes, poucas vezes, abacates que as freguesas do tio viviam elogiando. Eram os melhores abacates de São Paulo - segundo elas. Trabalhei com o tio um ano e meio, antes dir para o Exército. Anos difíceis, tanto os da barraca quanto os do Exército... Tio Genésio nunca foi um sujeito bem-humorado. Vivia de cara fechada, poucas palavras, olhar fustigador. Levava-me para a barraca para cobrir-lhe as ausências: a do xixi, a do almoço e a escapadela para se encontrar com Maria Zilda - crioula robusta, pensionista de um velho casarão a duas quadras da barraca. Era nos momentos em que voltava do quarto de Maria Zilda que o Genésio parecia mais tranqüilo. De vez em quando me trazia uma balas ou um pedaço de bolo. "Dona Zilda te mandou, menino!" Tenho quase certeza que ele não imaginava que eu soubesse de tudo. Dizia sempre que ia levar uma encomenda na casa da Zildinha - que era como todos a chamavam, apesar do tamanho avantajado da mulher. Só o tio a chamava de Dona Zilda, isto na minha frente. Ele dizia que ela passara e encomendara no dia anterior uns melões ou um quarto de melancia, porque a pobre morava sozinha e seria um desperdício levar uma melancia inteira. As encomendas da Zildinha, por uma dessas obras do destino, sempre aconteciam quando eu ia para a escola. Ou seja, depois das duas da tarde. Ainda voltava para ajudar o tio a desmontar a barraca, colocar as frutas nas caixas de isopor, guardar as caixas na sua velha Brasilia marrom metálica. Isso perto das oito da noite. Durante o inverno, ia direto pra casa - ordem da mãe. O que restava de bom em trabalhar ali na rua era mesmo vislumbrar as mulheres que iam e vinham a todo momento. Umas apressadas, outras a passos lentos; a maioria de cara amarrada (em São Paulo metade das pessoas circula de cara amarrada). As que se faziam companhia - quase todas jovens como eu, naquela época - sorriam mais facilmente. Pareciam sempre estar cochichando, pois falavam baixo ou muito próximas às orelhas da companheira. O tio também não era de deixar passar incólume uma calça mais justa, uma saia mais curta ou um rebolado mais sensual. Apenas tomava o cuidado de disfarçar, com medo de eu dedurar para a tia. "Arruma aquelas laranjas, ô Quinzinho!" - ordenava, quando queria acompanhar com o olhar os passos da morena faceira.

- Roma, querido!

Eu estava com um livrinho de palavras cruzadas na mão, perguntando em voz alta pra mim mesmo e para as maçãs o nome de uma capital européia com quatro letras. De repente ouvi aquela voz meio rouca dar-me a resposta de bandeja. Ergui rapidamente a cabeça e deparei-me com um anjo loiro, de cabelos encaracolados, sorriso aberto, dentição perfeita, olhos muito claros - que não soube distingüir, naquele momento, se eram verdes ou cor de mel. Levantei-me do caixote de madeira e lasquei um "pois não" amedrontado. Ela não respondeu. Continuou remexendo os pêssegos, apalpando alguns deles, colocando uns sobre os outros, buscando no fundo dos montes que ergui cuidadosamente naquela manhã, os mais apetitosos. Separei um saco plástico e deixei-o sobre as outras frutas para o caso de ela escolher alguns dos pêssegos. Porém, em seguida, ela deixou os pêssegos de lado e começou a apreciar os melões. Por falar em melões, eu não conseguia tirar os olhos dos fartos seios da deusa loira. O decote de sua blusa era mais abusado do que os dribles do Garrinha. Eu estava na calçada e ela no nível da rua. O que fazia com que o ângulo daquela visão magnífica me favorecesse a cada movimento que ela fazia para apalpar uma fruta mais distante de onde estava. Houve uma hora em que pressenti que, enfim, veria o seu sutiã. Logo depois descobri, pasmo, que ela não vestia nada sob aquela blusinha branca. Meu rosto deve ter ficado da cor das maças argentinas da banca. Mas valeu a pena. Vi tudo.

Todo o formato, toda a cor, toda rigidez daquele busto perfeito. O mais lindo que tinha visto até então. Melhor até do que o das mulheres das revistas que guardava sob o meu colchão - e que eu pensava que mamãe jamais soubera. Só faltou sentir sua textura.

Nunca fiquei tão fascinado por uma mulher na minha vida, até então. Ela continuava com o sorriso escancarado. Eu me remoía... Senti uma quentura, uma tremedeira incontrolável, a boca foi ficando seca e já não tinha mais como desviar meus olhos daquele corpo escultural. Foi quando ela, decidida, voltou à posição ereta, pegou uma pêra madura e a mostrou para mim. Estava pronto para pronunciar o famoso "é três por cinco", decretando o preço da mercadoria, quando ela perguntou:

- Posso levar uma para experimentar?

Com muita dificuldade, depois de engasgar, de gaguejar, respondi que tudo bem. Ela se foi, andando calmamente, pela larga calçada da Albion. Levou bem uns cinco minutos para desaparecer do alcance da minha visão. Minhas pernas ainda estavam trêmulas e desejei imensamente que o tio voltasse logo para eu ir até o banheiro do bar do Agripino soltar tudo aquilo que o corpo represava com muito esforço. Foi o que fiz quando o tio chegou da pensão da Zildinha.


*****

Eu não sabia, mas o tio contava todas as frutas da barraca. Talvez por isso sempre deixava um saco de supermercado para eu jogar as frutas podres recusadas pelos fregueses. E também por isso pegava o velho caderninho espiral para anotar uma coisa qualquer toda vez que eu pegava uma maçã, que era a única fruta que eu gostava.

- Por que tá faltando uma pêra madura? - colocou-me contra a parede tão logo voltei do Agripino.

Não tinha jeito, teria de confessar. Expliquei-lhe sobre a deusa loira. Descrevi cada centímetro daquele corpo que se escorou na barraca velha do tio e que, com certeza, se ele estivesse lá, faria o mesmo que fiz. Até ele, aquele muquirana, seria capaz de dar a banca inteira para ela, é fato. Ele pediu para eu dizer como ela estava vestida. Descrevi tim-tim por tim-tim. A blusa branca cavada, a saia jeans desbotada, curta, desfiapada nas pontas. O brinco de argola dourado, imenso. A sandália branca, com salto de cortiça. Falei-lhe do batom vermelho. "Igual ao da Marilyn Monroe, tio!" A expressão carrancuda do velho foi mudando aos poucos. Esboçou um sorriso. Segurou-o. Por fim, soltou uma gargalhada. Não entendi, a princípio. Mas o tio não parava de rir. Aquela risada de perder o fôlego, de ficar impossibilitado de pronunciar sequer uma palavra completa. Os transeuntes iam passando e olhando para o louco do tio. Eu não sabia mais onde enfiar a cara. O velho só podia ter enlouquecido.

- É a nova vizinha da Zildinha, filho!... - soluçou. Chama-se Zé Roberto.

 
 
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