OS AMORES DE DOLORES
Luís Valise
 
 

"Amanhecia quando Don Diego Corrales entrou no quarto de Dolores. Sobre a cama desfeita, jazia o vulto envolto em camisola de fina cambraia. Afastou com cuidado uma nesga da cortina de veludo, deixando que a claridade do sol nascente iluminasse o leito. O tecido transpareceu, e ele pode perceber o róseo da pele nacarada, os bicos amarronzados dos seios, a curva redonda das ancas, a sombra escura da pélvis recoberta de negro. Dobrou-se sobre o leito para sorver o calor que o corpo emanava, sem perceber que a mão de Dolores escorregava para debaixo do travesseiro, aparecendo subitamente a empunhar um pequeno punhal de prata. Don Diego sentiu a arma pontiaguda perfurando-lhe a pele do pescoço sob a barba hirsuta, e não teve outra saída senão pedir a mão da brava donzela em casamento.

Embora apaixonada por outro homem, a proposta vinda de pessoa tão poderosa obnubilou por instantes o bom-senso da jovem inexperiente, que julgou estar o pretendente velho o suficiente para não durar muito mais, e que a partir de sua morte viveria rica e feliz ao lado do verdadeiro amado. O raciocínio apressado fez com que aceitasse consumar o enlace.

Logo a notícia se espalharia por todas as léguas em que a estância se estendia. Terras a perder de vista. Don Diego era temido pelos empregados, que conheciam no lombo a fúria do seu chicote impiedoso, apelidado "Língua do Diabo". Quando algum se excedia no álcool, ou cometia um engano no trabalho, ou encontrava o Sinhozinho de mau-humor, o fazendeiro fazia estalar o relho de couro trançado nas costas do infeliz. Era odiado por isso, e muitos tramavam sua morte, mas não tinham coragem de levar a cabo a empreitada.

Dolores fora trazida da capital para lecionar na escolinha da Estância Golden Bull. Não que Don Diego se preocupasse com a cultura dos seus empregados, mas o avanço da tecnologia na agricultura, com seus tratores e colheitadeiras, impunha que todos aprendessem a ler, ou seriam incapazes de manejar os equipamentos. Desde sua chegada ela percebera o rabo comprido do olho do patrão, mas se fazia desentendida em seus galanteios carregados de malícia. O homem era viúvo, tinha filhos já crescidos estudando na cidade, e ela a custo suportava seus olhares grosseiros. Não fosse a necessidade do emprego, e ela já teria ido embora. A necessidade do emprego e o capataz da fazenda, Ricardo González. Era com Ricardo que ela sonhava, e esses sonhos faziam seu corpo transpirar sob as cobertas. O homem, na casa dos trinta anos, tratava os empregados com firmeza e respeito, e era admirado pelo senso de justiça. Muitas vezes conseguia impedir que Don Diego exercesse a tirania do chicote, interferindo com voz dura e argumentos sólidos. Don Diego não gostava dessas intervenções, mas o capataz era homem valoroso, que faria falta na condução dos trabalhos na terra, e nos cuidados com o enorme rebanho de gado. Por isso, Don Diego tolerava a intromissão do rapaz.

Ricardo estava parado junto à entrada da casa principal, quando Dolores saiu para a aula da manhã. Seus olhares se cruzaram, e Dolores sorriu para o homem de rosto queimado de sol, que, com ar sério, perguntou:

- É verdade? Você vai se casar com ele?

- Vou, mas será por pouco tempo. Tenha paciência, meu amado, e depois viveremos felizes para sempre.

Ricardo montou o tordilho, esporeou o animal, e saiu a galope desenfreado, rumo aos prados verdejantes, onde o gado pastava com habitual ignorância.

As bodas foram suntuosas. Os fazendeiros de todo o Estado acorreram ao festim, raro por aquelas bandas. Don Diego Corrales desfilava orgulhoso por entre os convivas, exibindo a linda e jovem senhora, de cujo alvo colo pendia exuberante colar de esmeraldas. Os filhos de Don Diego não viram com bons olhos aquela união, pois a professorinha levaria metade da herança caso um infortúnio se abatesse sobre o patriarca. Ricardo Gonzáles não fora convidado para o regabofe. Dentro do seu alojamento, ao lado das cocheiras, remoia um ódio profundo, visceral, pelo patrão, ao mesmo tempo em que ardia em desejos pela professorinha. A decisão era arriscada, mas um futuro radiante compensava o risco: eliminaria o asqueroso naquela mesma noite.

Assim que os últimos convidados se retiraram da mansarda, Don Diego escorraçou aos berros as empregadas que lidavam com pratos e copos. Não via a hora de estar sós com a nova esposa, ter em seus braços fortes e rudes seu delicado corpinho perfumado. Dolores pensou no que viria em seguida, e, sentindo um aperto na garganta, subiu para o quarto, cuja porta trancou pelo lado de dentro. Sentou-se à beira da cama, e duas lágrimas molharam as gemas esmeraldinas. Não fora para aquele ignorante que se guardara todo o tempo. Queria que seu primeiro homem fosse Ricardo, e era nele que pensava quando Don Diego esmurrou a porta do quarto, e sua voz tonitruou:

- Abra!

Dolores mal conseguiu balbuciar:

- Um momento, meu senhor, estou a me arrumar para nossa primeira noite.

O velho fauno esfregou as mãos de contentamento. Tornou descer à sala, onde serviu-se de uma dose generosa de conhaque. Andou para a varanda, acendeu um cigarro, e deixou que sua imaginação antecipasse as delícias que aquela noite prometia. Não percebia o vulto sorrateiro agachado atrás do roseiral.

O uivo de um lobo ao longe despertou-o de suas divagações. Tomou de um gole o resto da bebida, e subiu para o encontro de sua jovem dama. A porta do quarto estava apenas encostada. Abriu-a, e viu Dolores ao lado da cama, vestindo uma camisola vaporosa, transparente. A janela estava aberta, o vento balançava os cabelos encaracolados da moça, e enchia o quarto com o perfume das flores. Don Diego sentiu o sangue ferver em suas veias. Avançou até onde ela estava, enlaçando-a pela cintura, e colando sua boca cheirando a conhaque no pescoço alvo e palpitante da jovem senhorinha. Dolores manteve o corpo rígido, braços caídos, e quando sentiu a língua áspera do homem em sua orelha quase desfaleceu de terror, e seu corpo tombou sobre a cama coberta por fina colcha de rendas. Deixou-se ficar deitada, olhando Don Diego tirar o paletó, o colete, a gravata, até sentar-se na cama para tirar as botas. Aí seus olhos notaram um vulto do lado de fora da janela. Era Ricardo Gonzáles que viera para salva-la!

Sua cabeça trabalhou rápido: tinha que manter Don Diego de costas para a janela. Levantou a perna, e roçou a nuca do homem com seu pezinho. O fazendeiro estremeceu, tomou o pé da moça nas mãos e cobriu-o de beijos. Em seguida deitou-se ao seu lado, e beijou-a na boca. Dolores abraçou o homem, mantendo-o de costas para a janela. Ricardo moveu a cortina para o lado, e entrou no quarto. O único ruído que se ouvia era o da respiração ofegante de Don Diego. Ao dar o primeiro passo no ambiente silencioso, Ricardo percebeu seu erro, pois o tilintar da espora de aço soou como moeda caindo em chão de cimento. Don Diego ficou imóvel, o corpo reclinado sobre o de Dolores. O moço aproximou-se da cama, e colocando a mão no ombro do grande rival, ordenou:

- Vire-se, canalha!

Don Diego Corrales foi-se virando lentamente, a mão deslizando junto ao travesseiro, e num gesto surpreendentemente rápido para a sua idade cravou um pequeno punhal de prata na garganta do capataz traidor. A lâmina penetrou abaixo do pomo-de-Adão, e um jorro de sangue tingiu de vermelho a colcha imaculada, enquanto o jovem caía em estertores junto da cama. Dolores não pode conter um grito de horror. Tentou levantar-se da cama, disse que precisavam chamar por socorro, porém Don Diego segurou-a pelo pulso com sua mão de ferro:

- Depois. Depois teremos muito tempo para isso.

Segurando a camisola pelo decote, puxou-a violentamente para baixo, deixando a jovem completamente nua. Empurrou-a em direção da cama, despiu-se, e, sem mais delongas, tratou de aumentar a dinastia dos Corrales.

Sentado em sua cadeira de balanço, Don Diego observa o cair da tarde. Logo o tempo ficará frio demais para que ele permaneça fora da casa, e algum empregado virá busca-lo. Dona Dolores engordou após o terceiro filho, e sentada dentro da sala contempla a cabeleira branca do marido. Parou de lecionar. Perdeu o interesse pela vida, embora ainda transpire sob as cobertas, quando sonha com o jovem de pele queimada de sol, que aparece montado num tordilho. Quando ele caminha suas esporas retinem como moedas de prata no cimento, e de longe ainda diz que a ama, num grito mudo."

 
 
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