OBRA-PRIMA
Thaty Marcondes
 
 

Tão perfeita quanto em meus delírios mais insanos.

Eu tentei imitar sua beleza. Ela fazia pose durante horas. Tentava ficar imóvel. A natureza fizera dela uma obra-prima de mulher, mas eu havia de tê-la, nem que apenas em forma de uma mísera cópia, feita por minhas próprias mãos. Minha obra-prima. Eu a queria para sempre, enquanto durasse minha eternidade. Meu amor transformado em objeto do desejo. Eu só pensava nisso. Eu estava fascinado.

Haveria de ficar linda, em "marmo granito perlato royal", encomendado em Cassino, sul da Itália. Além do bloco maciço de pedra, custou-me enviá-la pessoalmente num cruzeiro de navio pela costa italiana, verificando a qualidade do mesmo e o embarque. Quando voltou estava mais linda do que me lembrava. Eu estava ficando obcecado.

Agia como louco: dias e dias sem sair de casa. Tudo às escuras, pra acertar os tons, as matizes desejadas pra que minha obra ficasse perfeita. Comecei o trabalho em ritmo alucinado. Fiquei abstêmio durante 3 semanas. Com a proximidade da lua cheia, no entanto, tive que adiar o projeto, inventando uma desculpa para afastá-la temporariamente. Ela acreditou. Acreditava na minha mania de perfeccionismo impondo esculpí-la em pedra, na penumbra, por conta da montagem que eu faria na exposição, em Nova Yorque, sob os efeitos de luz que eu estava imaginando, etc. Acreditava, até, que eu fosse humano.

Não, ela não poderia me ver em estado alterado. Ainda não. Não, ela não poderia conhecer meus vícios mais baixos, minha aparência mais vil. Ainda não. Enviei-a a Paris. Encomendei que comprasse uma roupa vermelha, de couro. Cheguei a explicar detalhes, desenhei. Dei o endereço da peleteria na Rue de Borgogne. O dono era amigo. Sabia de meus segredos, me devia favores. Afinal, eu poupara a vida de seu bisavô paterno, certa feita, há mais de século, num duelo.

Ah, quando lembro da minha loucura!!! Desço ao inferno e não consigo mais me levantar de suas chamas endiabradas!

Foi no último dia de lua cheia. Eu, ainda sedento, querendo ao menos mais um gole. Ela chegou sem avisar, dois dias antes do combinado. Entrou sorrindo, correndo pela sala principal, na roupa de couro rubro qual vinho. Olhei-a com olhos de cobiça, como quem espia a presa. Ela não me reconheceu. Ficou estática, congelada, num misto de assustada e entristecida, parecendo adivinhar o que viria a seguir. Corri ao seu encontro. Ela não se mexeu. Sabia, devia sentir, a tragédia que se abateria sobre nós. Beijei-a. Suguei o néctar de sua vida, aspirei o fluído de sua vitalidade. É a lei da sobrevivência. Por maior que fosse o amor, eu não morreria por ele. Poderia tê-la transformado em eterna, mas isso não me daria garantias de sua fidelidade. Eu sei: conheço minha espécie.

A exposição foi aberta essa semana. Todos se espantam ante a perfeição da estátua da mulher azul recoberta de mármore, com roupa de couro vermelho. Não, não está à venda. Eu não sobreviveria sem sua presença, pois ela ainda exerce, sobre mim, um estranho fascínio. Ainda há algo dela na escultura, bem como algo dela ainda vive em mim. Em sua homenagem, na composição da apresentação na Galeria, uma taça antiga de cristal e prata. Dentro, um líquido rubro faz contraste. Um blood-mary. Talvez vinho. Talvez sangue.

 
 
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