ARTE DE PENSAR
Angela Viana
 
 

Para Luís, ter uma boa memória era um formidável privilégio que ele nunca teve. Desde criança, tinha dificuldades de se lembrar das menores coisas devido principalmente ao seu jeito distraído de ser e à sua total falta de atenção.

Quando conheceu Marília, o que lhe chamou a atenção na moça não foi seu belo rosto e muito menos seu corpo escultural, Luís se apaixonou pela memória dela, que era de fato extraordinária. Marília se lembrava facilmente de acontecimentos que ocorreram antes de seus 2 anos de idade, bem como sabia exatamente onde guardava cada uma de suas coisas e detalhes de frases que escutava ao acaso, mesmo quando não parecia prestar a menor atenção.

No início, ela se encantou por ele também, afinal de contas, Luís era um rapaz muito bonito de corpo atlético e olhos azuis que costumavam fascinar as garotas. Começaram a namorar e viveram muito felizes durante um certo tempo. Mas quando ele começou a se acostumar com ela e por mais que não tivesse intenção, esquecia os horários de encontros ou o que é pior, datas importantes, como o aniversário dela ou a data em que começaram a namorar, as coisas foram ficando complicadas.

Marília sempre ouvia as amigas dizerem que os homens eram mesmo distraídos e que aquele tipo de situação era normal, por isso, apesar de ficar furiosa, sempre acabava perdoando o namorado, que como todo distraído, nem desconfiava que isso estava complicando seu relacionamento.

Quando estavam juntos, Marília sempre se lembrava de fatos que ambos vivenciaram e que na maior parte das vezes, ele nem tinha percebido, era extremamente detalhista e Luís, ficava cada dia mais admirado com ela.

Então chegou o dia em que decidiram se casar, Marília jamais imaginou que Luís ia esquecer de ir para a igreja no horário marcado e se não fosse por um telefonema do pai dela, certamente ele não teria comparecido à cerimônia. Atrasou mais de duas horas e o padre ficou indignado, bem como a noiva, que quase teve uma crise de nervos.

Marília não conseguia confiar no marido para nada, até a mais simples tarefa para ele era difícil, pois sempre acabava esquecendo completamente do que estava fazendo e nada dava certo. Tudo piorou quando nasceu o filho, Marília se sentia demasiadamente sobrecarregada com o trabalho e os cuidados com a criança, enquanto Luís tentava arrumar um emprego, embora nada do que tentasse fazer fosse possível conseguir com a péssima memória que tinha.

Então um dia ela se foi. Não deixou nem ao menos um bilhete e o mais espantoso é que Luís levou 3 dias para descobrir o fato. Ficou muito triste, como era de se esperar, afinal de contas ele a amava e ela havia levado seu filho, que ainda estava começando a engatinhar...mas, logo foi se acostumando a viver sem ela e se não fosse pela ajuda que os pais lhe davam, certamente seria mais um pobre andarilho, pois desistiu de trabalhar.

Esquecer tem lá suas vantagens... Luís sofreu menos com a perda da esposa e do filho, do que seria o normal se fosse um homem comum e além disso, destruiu todos as fotografias que tinha dela, a fim de que qualquer mulher fosse ela, pois em pouco tempo, esqueceu totalmente seu rosto e até mesmo como era o som da sua voz.

E assim, passou a freqüentar prostíbulos e a ter vários casos com mulheres que ele nem sequer se lembrava o nome e viveu um certo tempo muito bem, até que, por puro esquecimento de se prevenir, acabou contraindo HIV e morreu em pouco tempo, simplesmente porque nunca se lembrava de tomar o coquetel de AZT.

 
 
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